terça-feira, 1 de novembro de 2016

Questões em torno de relações jurídicas administrativas no âmbito dos registos e notariado

A questão a que me proponho justifica da minha parte sobretudo o seu enquadramento mais do que o ensaio de uma resposta minimamente definitiva que só uma investigação de maior porte permitiria. Trata-se de saber qual a jurisdição e qual o direito processual próprios para dirimir litígios entre os cidadãos e um setor da administração pública a que genericamente se reconhece uma função de publicidade: as conservatórias e o notariado.
Refiro-me concretamente a atos notariais e a atos no âmbito do Registo Civil, do Registo Predial, do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, do Registo Comercial, entre outros.
Atente-se que nos referimos aos atos praticados pelos notários e conservadores e não aos atos praticados pelos particulares que a lei submete a estas exigências de publicidade. É que, quanto aos primeiros, não podemos deixar de nos questionar: serão atos administrativos, inseridos em relações jurídicas administrativas ou, ao invés, atos de outra natureza inseridos em relações jurídico-privadas? E a que jurisdição deverão ser submetidos os litígios emergentes da pratica desses atos, comum ou administrativa?
Na verdade, estes são atos praticados no exercício da função administrativa, constituem relações jurídico-administrativas entre os cidadãos e o Estado, podem ser lesivos dos seus direitos e interesses particulares, mas são os tribunais comuns a deter a competência para conhecer da sua impugnação[1].
Para responder a estas questões será necessário tecer breves considerações acerca deste tipo de atos.
Em primeiro lugar, os atos registrais e notariais são praticados por autoridades públicas satisfazendo uma necessidade coletiva de certeza e segurança jurídica. Trata-se de situações jurídicas que, devido à sua importância económica ou social, precisam de maiores garantias jurídicas formais e de publicidade oficial. O conservador ou o notário não se limitam a desempenhar o papel de arquivistas ou de testemunhas qualificadas. Exercem verdadeiros poderes públicos de uma forma particularmente visível quando indeferem ou impedem os particulares de alcançar a validade ou a eficácia de certos atos e negócios jurídicos sujeitos a uma solenidade própria ou a formas de publicidade registral.
O objetivo é, aqui, o de garantir a autenticidade e a certeza da situação jurídica. Para tal, a lei podia ter optado por duas vias: ou deixava à iniciativa privada a responsabilidade pela prestação destes serviços ou assumia-a como uma tarefa do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas.
Este último foi sempre o modelo escolhido entre nós – atribuir a entidades públicas as atividades ligadas à fé pública e à garantia de direitos e bens de particulares -, embora recentemente a privatização do notariado apresente traços daquilo que se pode designar como exercício de funções administrativas por privados.
Ao mesmo tempo, devemos atentar no facto de a função exercida por estes órgãos ser uma função administrativa. Desde logo porque, como nos explica o Prof. Mário Esteves de Oliveira, o direito administrativo e a relação jurídica administrativa não existem apenas quando o interesse privado conflitua com o interesse público e prevalece sobre este, mas também quando o interesse público é precisamente o de servir de garante da realização, de modo coletivamente ordenado e organizado, das situações jurídicas dos particulares.
Note-se que não estamos a tratar dos casos de jurisdição voluntária que a lei atribui às conservatórias, nomeadamente, divórcio por mútuo consentimento ou processo de inventário.
É que a questão controvertida está na essência da atividade registral e notarial. As normas destes âmbitos devem ser repartidas entre, por um lado, normas relativas à capacidade, à vontade, à forma e ao conteúdo dos atos e negócios jurídicos de direito privado que são normas de direito privado e, por outro lado, normas que dizem respeito à atuação do oficial público no reconhecimento, registo ou arquivo desses negócios jurídicos, que são normas de direito administrativo (notarial ou registral). Enquanto nas primeiras estão em causa relações jurídicas privadas, as segundas dispõem sobre competência, procedimento e subsistência dos registos efetuados.
Funcionalmente, também é possível apontarmos as diferenças. Enquanto umas pretendem proteger os interesses económicos e pessoais dos particulares, as outras têm como propósito a prossecução do interesse público da certeza do registo: a confiança pública.
A natureza administrativa desta atividade é ainda mais evidente quando chegamos à conclusão de que a aplicação destas normas registrais apenas pode ser feita pela autoridade registral, não podendo o particular dirigir-se aos tribunais para que este decida quais os seus direitos registrais ou para que condene a entidade ao registo.
Em todos os regimes de registo encontramos previsto como meio de defesa dos direitos dos particulares o recurso hierárquico tipicamente administrativo. O lesado recorre dentro da administração pública e só depois pode impugnar um ato lesivo nos tribunais judiciais comuns, ainda quando se trate de um vício relativo à competência do órgão, à preterição de formalidades essenciais ou à violação de princípios gerais de direito público.
Sendo a atividade destes oficiais públicos consiste em aplicar as normas registrais às situações jurídicas que os particulares lhe submetem para o efeito, a coerência do ordenamento jurídico exigiria que os litígios relativos a estas situações jurídicas fossem regulados pelo direito civil, mas que as questões relativas à competência e ao procedimento fossem reguladas pelo direito administrativo e, portanto, submetidas à jurisdição administrativa.
Apesar disto, a verdade é que o legislador preferiu manter a unidade jurisdicional do ato registral, independentemente de estarmos perante litígios relacionados com as situações jurídicas subjacentes ao registo ou relacionados com questões de competência ou procedimento, submetendo todas as questões relacionadas com o registo aos tribunais judiciais.
Mas será que esta solução está de acordo com a nossa Constituição, tendo em conta que desde a 2ª revisão constitucional (1989) os tribunais administrativos e fiscais passaram a beneficiar de uma garantia institucional de existência?
A resposta a esta pergunta prende-se muito com uma questão há já muito debatida na doutrina e na jurisprudência e que é a de saber se o art.º 212/3 da CRP, ao dispor que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” e, portanto, ao estabelecer uma delimitação material da jurisdição administrativa, está ou não a consagrar uma reserva material absoluta de jurisdição em favor dos tribunais administrativos e fiscais.
Ou seja, estabelecendo o legislador constituinte uma reserva absoluta de jurisdição, o legislador ordinário estaria impedido de atribuir aos tribunais judiciais o poder de julgar questões emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais e, no reverso da moeda, não poderia também atribuir aos tribunais administrativos e fiscais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas de outra natureza.
Entendendo-se, pelos motivos acima expostos, que os atos em questão são atos administrativos inseridos em relações administrativas em que temos, por um lado, a pratica de um ato e, no lado contrário, o direito subjetivo à prática desse ato em conformidade com a lei, podemos compreender as consequências de um possível estabelecimento de uma reserva absoluta de jurisdição – a submissão dos litígios emergentes em matéria de registos aos tribunais judiciais seria inconstitucional. Para este entendimento parecem inclinar-se Gomes Canotilho/Vital Moreira[2], considerando que a única exceção à reserva da jurisdição administrativa e fiscal é aquela que a própria constituição estatui: “o contencioso eleitoral (exceto o relativo a órgão de pessoas coletivas de direito público, onde a regra, por força do art.º 4/1 m) do ETAF, é a da subordinação à jurisdição administrativa) que, nos termos do art.º223/2 c) pertence ao Tribunal Constitucional”.
No mesmo sentido aponta Mário esteves de Oliveira[3] focando-se num argumento literal. Com este autor podíamos dizer que nada na letra da lei parece deixar margem para a intermediação da lei ordinária. Parece, à partida, uma norma fechada, sem qualquer ressalva que restrinja a sua aplicação.
Convocando o argumento sistemático e confrontando o art.º 211 e 212 da CRP, podíamos dizer que, se a jurisdição dos tribunais judiciais, fora das matérias cíveis e criminais, só abrange as “áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” e a área administrativa é, logo a seguir, submetida à jurisdição administrativa, então não podem ser entregues aos tribunais judiciais litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Em sentido contrário poderíamos entender com Sérvulo Correia[4] e Vieira de Andrade[5] que o legislador ordinário pode consagrar exceções, desde que com isso não esvazie do âmago essencial a competência dos tribunais administrativos.
Para Vieira de Andrade o art.º 212/3 da CRP não é mais do que “uma regra definidora de um modelo típico, suscetível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caraterizador do modelo.”[6] E prossegue Vieira de Andrade afirmando “em resumo, a interpretação mais razoável do preceito constitucional parece ser a de que visa apenas consagrar os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa. E, como veremos, foi essa a interpretação que esteve na base da reforma legislativa de 2002, que redefiniu o âmbito da jurisdição administrativa em termos que não coincidem inteiramente com a definição substancial da justiça administrativa determinada pela Constituição[7]”.
O Tribunal Constitucional não levantou objeções à impugnação contenciosa de um ato da conservatória do registo predial de Coimbra para os tribunais comuns, considerando que estamos perante uma atividade da administração pública muito próxima do direito privado (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, 1ª secção, de 28/05/2003, Processo nº5/03).
O que parece verdadeiramente surpreendente é a convivência pacífica dos próprios tribunais administrativos com esta orientação (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, 2º Juízo, de 9/05/2013, processo nº05209/09; Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, 1ª Secção de 5/02/2016, Processo nº00236/14.3BEPRT).
Em nosso entender, a última revisão do ETAF e do CPTA[8], ao transpor para a jurisdição administrativa as impugnações judiciais da aplicação de coimas por violação de normas urbanísticas (art.º 4/1 l) do ETAF) e ao deixar intocada a competência dos tribunais comuns em matéria de relações jurídicas administrativas de registos e notariado veio acentuar a incongruência do sistema. Note-se que para as contraordenações era tradicionalmente explicado que havia vantagem na proximidade que só os tribunais comuns estariam em condições de prestar. No entanto, hoje, os tribunais administrativos de 1ª instância apresentam-se bastante mais próximos do que anteriormente.
Por fim[9], há que dizer que o problema não é simplesmente de jurisdição de uns ou de outros tribunais, mas prende-se com as menores garantias que os tribunais comuns prestam aos cidadãos ao aplicarem um conjunto de regras processuais sem lugar para a condenação na prática de ato devido (artigos 66º e seguintes do CPTA) e sem os meios cautelares com que a reforma de 2002 enriqueceu o contencioso administrativo.
A situação mais paradoxal é talvez a do Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Prevê-se o recurso hierárquico para o presidente do IRN, IP em alternativa à impugnação judicial direta para os tribunais comuns (art.º 63) e ao mesmo tempo manda-se aplicar subsidiariamente o disposto no Código do Procedimento Administrativo (art.66º). Quer isto dizer que se está a admitir expressamente litígios emergentes de relações jurídicas administrativas fora da jurisdição dos tribunais administrativos, em favor dos tribunais comuns cuja especialização neste domínio é escassa.





[1] Ver, como exemplo, os artigos 286º ss. do Código do Registo Civil, os artigos 117º e ss. do Código do Registo Predial, os artigos 63º e ss. do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, etc.
[2] Constituição da república Portuguesa Anotada, II Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010, pp.565 e ss.
[3] A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas substantivos, contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof. Doutor Rogério Soares, Universidade de Coimbra, 2001, pp. 503 e ss.
[4] A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995.
[5] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98
[6] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98. O autor regista ser esta também a posição seguida por Sérvulo Correira (A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, p.554)
[7] Ob. Cit., p.100
[8] DL nº214-G/2015 de 2 de outubro
[9] DL 129/98 de 13 de maio

Bibliografia:
A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995.
A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas substantivos, contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof. Doutor Rogério Soares, Universidade de Coimbra, 2001.
GOMES CANOTILHO, José Joaquim/MOREIRA, Vital, Constituição da república Portuguesa Anotada, II Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010
VIEIRA DE ANDRADE, José A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016



                                                                                                              Matilde Folque Ferreira,
                                                                                                                           Aluna nº24098




Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.