A questão a que me proponho justifica
da minha parte sobretudo o seu enquadramento mais do que o ensaio de uma
resposta minimamente definitiva que só uma investigação de maior porte
permitiria. Trata-se de saber qual a jurisdição e qual o direito processual
próprios para dirimir litígios entre os cidadãos e um setor da administração
pública a que genericamente se reconhece uma função de publicidade: as
conservatórias e o notariado.
Refiro-me concretamente a atos
notariais e a atos no âmbito do Registo Civil, do Registo Predial, do Registo
Nacional de Pessoas Coletivas, do Registo Comercial, entre outros.
Atente-se que nos referimos aos atos
praticados pelos notários e conservadores e não aos atos praticados pelos
particulares que a lei submete a estas exigências de publicidade. É que, quanto
aos primeiros, não podemos deixar de nos questionar: serão atos
administrativos, inseridos em relações jurídicas administrativas ou, ao invés,
atos de outra natureza inseridos em relações jurídico-privadas? E a que
jurisdição deverão ser submetidos os litígios emergentes da pratica desses
atos, comum ou administrativa?
Na verdade, estes são atos praticados
no exercício da função administrativa, constituem relações
jurídico-administrativas entre os cidadãos e o Estado, podem ser lesivos dos
seus direitos e interesses particulares, mas são os tribunais comuns a deter a competência
para conhecer da sua impugnação[1].
Para responder a estas questões será
necessário tecer breves considerações acerca deste tipo de atos.
Em primeiro lugar, os atos registrais
e notariais são praticados por autoridades públicas satisfazendo uma
necessidade coletiva de certeza e segurança jurídica. Trata-se de situações
jurídicas que, devido à sua importância económica ou social, precisam de
maiores garantias jurídicas formais e de publicidade oficial. O conservador ou
o notário não se limitam a desempenhar o papel de arquivistas ou de testemunhas
qualificadas. Exercem verdadeiros poderes públicos de uma forma particularmente
visível quando indeferem ou impedem os particulares de alcançar a validade ou a
eficácia de certos atos e negócios jurídicos sujeitos a uma solenidade própria
ou a formas de publicidade registral.
O objetivo é, aqui, o de garantir a
autenticidade e a certeza da situação jurídica. Para tal, a lei podia ter
optado por duas vias: ou deixava à iniciativa privada a responsabilidade pela
prestação destes serviços ou assumia-a como uma tarefa do Estado ou de outras
pessoas coletivas públicas.
Este último foi sempre o modelo
escolhido entre nós – atribuir a entidades públicas as atividades ligadas à fé
pública e à garantia de direitos e bens de particulares -, embora recentemente
a privatização do notariado apresente traços daquilo que se pode designar como exercício
de funções administrativas por privados.
Ao mesmo tempo, devemos atentar no
facto de a função exercida por estes órgãos ser uma função administrativa.
Desde logo porque, como nos
explica o Prof. Mário Esteves de
Oliveira, o direito administrativo e a relação jurídica administrativa
não existem apenas quando o interesse privado conflitua com o interesse público
e prevalece sobre este, mas também quando o interesse público é precisamente o
de servir de garante da realização, de modo coletivamente ordenado e organizado,
das situações jurídicas dos particulares.
Note-se que não estamos a tratar dos
casos de jurisdição voluntária que a lei atribui às conservatórias,
nomeadamente, divórcio por mútuo consentimento ou processo de inventário.
É que a questão controvertida está na
essência da atividade registral e notarial. As normas destes âmbitos devem ser
repartidas entre, por um lado, normas relativas à capacidade, à vontade, à
forma e ao conteúdo dos atos e negócios jurídicos de direito privado que são
normas de direito privado e, por outro lado, normas que dizem respeito à
atuação do oficial público no reconhecimento, registo ou arquivo desses negócios
jurídicos, que são normas de direito administrativo (notarial ou registral).
Enquanto nas primeiras estão em causa relações jurídicas privadas, as segundas
dispõem sobre competência, procedimento e subsistência dos registos efetuados.
Funcionalmente, também é possível
apontarmos as diferenças. Enquanto umas pretendem proteger os interesses
económicos e pessoais dos particulares, as outras têm como propósito a
prossecução do interesse público da certeza do registo: a confiança pública.
A natureza administrativa desta
atividade é ainda mais evidente quando chegamos à conclusão de que a aplicação
destas normas registrais apenas pode ser feita pela autoridade registral, não
podendo o particular dirigir-se aos tribunais para que este decida quais os
seus direitos registrais ou para que condene a entidade ao registo.
Em todos os regimes de registo
encontramos previsto como meio de defesa dos direitos dos particulares o
recurso hierárquico tipicamente administrativo. O lesado recorre dentro da administração
pública e só depois pode impugnar um ato lesivo nos tribunais judiciais comuns,
ainda quando se trate de um vício relativo à competência do órgão, à preterição
de formalidades essenciais ou à violação de princípios gerais de direito
público.
Sendo a atividade destes oficiais
públicos consiste em aplicar as normas registrais às situações jurídicas que os
particulares lhe submetem para o efeito, a coerência do ordenamento jurídico
exigiria que os litígios relativos a estas situações jurídicas fossem regulados
pelo direito civil, mas que as questões relativas à competência e ao
procedimento fossem reguladas pelo direito administrativo e, portanto,
submetidas à jurisdição administrativa.
Apesar disto, a verdade é que o legislador
preferiu manter a unidade jurisdicional do ato registral, independentemente de
estarmos perante litígios relacionados com as situações jurídicas subjacentes
ao registo ou relacionados com questões de competência ou procedimento,
submetendo todas as questões relacionadas com o registo aos tribunais
judiciais.
Mas será que esta solução está de acordo
com a nossa Constituição, tendo em conta que desde a 2ª revisão constitucional
(1989) os tribunais administrativos e fiscais passaram a beneficiar de uma
garantia institucional de existência?
A resposta a esta pergunta prende-se
muito com uma questão há já muito debatida na doutrina e na jurisprudência e que
é a de saber se o art.º 212/3 da CRP, ao dispor que “Compete aos tribunais
administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que
tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais” e, portanto, ao estabelecer uma delimitação material
da jurisdição administrativa, está ou não a consagrar uma reserva material
absoluta de jurisdição em favor dos tribunais administrativos e fiscais.
Ou seja, estabelecendo o legislador
constituinte uma reserva absoluta de jurisdição, o legislador ordinário estaria
impedido de atribuir aos tribunais judiciais o poder de julgar questões
emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais e, no reverso da
moeda, não poderia também atribuir aos tribunais administrativos e fiscais o
poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas de outra natureza.
Entendendo-se, pelos motivos acima
expostos, que os atos em questão são atos administrativos inseridos em relações
administrativas em que temos, por um lado, a pratica de um ato e, no lado
contrário, o direito subjetivo à prática desse ato em conformidade com a lei,
podemos compreender as consequências de um possível estabelecimento de uma
reserva absoluta de jurisdição – a submissão dos litígios emergentes em matéria
de registos aos tribunais judiciais seria inconstitucional. Para este
entendimento parecem inclinar-se Gomes
Canotilho/Vital Moreira[2], considerando
que a única exceção à reserva da jurisdição administrativa e fiscal é aquela
que a própria constituição estatui: “o contencioso eleitoral (exceto o relativo
a órgão de pessoas coletivas de direito público, onde a regra, por força do
art.º 4/1 m) do ETAF, é a da subordinação à jurisdição administrativa) que, nos
termos do art.º223/2 c) pertence ao Tribunal Constitucional”.
No mesmo sentido aponta Mário esteves de Oliveira[3] focando-se
num argumento literal. Com este autor podíamos dizer que nada na letra da lei
parece deixar margem para a intermediação da lei ordinária. Parece, à partida,
uma norma fechada, sem qualquer ressalva que restrinja a sua aplicação.
Convocando o argumento sistemático e
confrontando o art.º 211 e 212 da CRP, podíamos dizer que, se a jurisdição dos
tribunais judiciais, fora das matérias cíveis e criminais, só abrange as “áreas
não atribuídas a outras ordens judiciais” e a área administrativa é, logo a
seguir, submetida à jurisdição administrativa, então não podem ser entregues
aos tribunais judiciais litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas.
Em sentido contrário poderíamos entender
com Sérvulo Correia[4] e
Vieira de Andrade[5] que
o legislador ordinário pode consagrar exceções, desde que com isso não esvazie
do âmago essencial a competência dos tribunais administrativos.
Para Vieira
de Andrade o art.º 212/3 da CRP não é mais do que “uma regra definidora
de um modelo típico, suscetível de adaptações ou de desvios em casos especiais,
desde que não fique prejudicado o núcleo caraterizador do modelo.”[6]
E prossegue Vieira de Andrade
afirmando “em resumo, a interpretação mais razoável do preceito constitucional
parece ser a de que visa apenas consagrar os tribunais administrativos como os
tribunais comuns em matéria administrativa. E, como veremos, foi essa a
interpretação que esteve na base da reforma legislativa de 2002, que redefiniu
o âmbito da jurisdição administrativa em termos que não coincidem inteiramente
com a definição substancial da justiça administrativa determinada pela
Constituição[7]”.
O Tribunal Constitucional não
levantou objeções à impugnação contenciosa de um ato da conservatória do
registo predial de Coimbra para os tribunais comuns, considerando que estamos
perante uma atividade da administração pública muito próxima do direito privado
(cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, 1ª secção, de 28/05/2003, Processo
nº5/03).
O que parece verdadeiramente surpreendente
é a convivência pacífica dos próprios tribunais administrativos com esta
orientação (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, 2º Juízo,
de 9/05/2013, processo nº05209/09; Acórdão do Tribunal Central Administrativo
do Norte, 1ª Secção de 5/02/2016, Processo nº00236/14.3BEPRT).
Em nosso entender, a última revisão
do ETAF e do CPTA[8], ao
transpor para a jurisdição administrativa as impugnações judiciais da aplicação
de coimas por violação de normas urbanísticas (art.º 4/1 l) do ETAF) e ao
deixar intocada a competência dos tribunais comuns em matéria de relações
jurídicas administrativas de registos e notariado veio acentuar a incongruência
do sistema. Note-se que para as contraordenações era tradicionalmente explicado
que havia vantagem na proximidade que só os tribunais comuns estariam em
condições de prestar. No entanto, hoje, os tribunais administrativos de 1ª
instância apresentam-se bastante mais próximos do que anteriormente.
Por fim[9],
há que dizer que o problema não é simplesmente de jurisdição de uns ou de
outros tribunais, mas prende-se com as menores garantias que os tribunais
comuns prestam aos cidadãos ao aplicarem um conjunto de regras processuais sem
lugar para a condenação na prática de ato devido (artigos 66º e seguintes do
CPTA) e sem os meios cautelares com que a reforma de 2002 enriqueceu o
contencioso administrativo.
A situação mais paradoxal é talvez a do
Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Prevê-se o recurso
hierárquico para o presidente do IRN, IP em alternativa à impugnação judicial
direta para os tribunais comuns (art.º 63) e ao mesmo tempo manda-se aplicar
subsidiariamente o disposto no Código do Procedimento Administrativo (art.66º).
Quer isto dizer que se está a admitir expressamente litígios emergentes de
relações jurídicas administrativas fora da jurisdição dos tribunais
administrativos, em favor dos tribunais comuns cuja especialização neste
domínio é escassa.
[1] Ver, como exemplo, os artigos 286º ss. do Código do
Registo Civil, os artigos 117º e ss. do Código do Registo Predial, os artigos
63º e ss. do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, etc.
[2] Constituição da república Portuguesa Anotada, II
Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010, pp.565 e ss.
[3] A publicidade,
o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas substantivos,
contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof. Doutor Rogério
Soares, Universidade de Coimbra, 2001, pp. 503 e ss.
[4] A arbitragem
voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória
do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 1995.
[5] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98
[6] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça
Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98. O autor regista ser
esta também a posição seguida por Sérvulo
Correira (A arbitragem voluntária
no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do
Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 1995, p.554)
[7] Ob. Cit., p.100
[8] DL nº214-G/2015 de 2 de outubro
[9] DL 129/98 de 13 de maio
Bibliografia:
A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor
João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995.
A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas
substantivos, contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof.
Doutor Rogério Soares, Universidade de Coimbra, 2001.
GOMES CANOTILHO, José Joaquim/MOREIRA, Vital, Constituição da república
Portuguesa Anotada, II Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010
VIEIRA DE ANDRADE, José A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição,
Coimbra, 2016
Matilde Folque Ferreira,
Aluna nº24098
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