Introdução
São várias as razões que podemos apontar em defesa do
Tribunal dos Conflitos, entre elas: o facto deste realizar uma função judicial,
não estando incluído na jurisdição judicial, o que o torna isento e
imparcial; este tribunal apresenta-se como equidistante em relação às partes e
órgãos directamente interessados no conflito; em terceiro lugar, tem uma
composição partidária (que não é absoluta já que o presidente do Supremo Tribunal
Administrativo – STA- tem o voto de desempate); e, por último releva o facto de
ter sido dotado de força constitucional[1].
O sistema de distribuição legal das competências não estaria,
portanto, completo sem as normas que estabelecem “a competência das
competências”, isto é, a competência para resolver eventuais conflitos de
jurisdição[2],
que podem ser positivos (quando dois tribunais se arrogam ao poder de conhecer da
mesma questão), ou negativos (quando dois tribunais declinam conhecer dessa
mesma questão).[3].
Como estabelece o art. 14.º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA), a decisão que declare os tribunais
administrativos incompetentes em razão da jurisdição implica a absolvição da
instância, com a possibilidade de remessa do processo para o tribunal
competente, a requerimento do interessado, ou a propositura de uma nova acção
noutro tribunal. Se, no entanto, o tribunal judicial para o qual o processo
tenha sido remetido ou perante o qual tenha sido, de novo proposta a acção,
vier igualmente a declarar-se incompetente, configura-se um conflito, que deve
ser solucionado pelo Tribunal dos Conflitos, nos termos dos arts. 109º e
seguintes do CPC. O Tribunal dos Conflitos é constituído por juízes em igual
número do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e do STA, e é presidido pelo
presidente do STA[4], estando legalmente consagrado no n.º3 do art. 209.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O funcionamento do Tribunal de Conflitos ainda se rege pelo
disposto no DL n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931, e pelo DL 23 185, de 30 de
Outubro de 1933, embora vários dos seus preceitos se devam considerar, hoje,
revogados[5], daí a defesa por parte de diversos autores de uma Reforma do Tribunal de Conflitos.
Reforma Orgânica do
Tribunal dos Conflitos
Tendo em consideração o carácter disperso e, por diversas
vezes ultrapassado, das normas que ainda tutelam o Tribunal dos Conflitos, constatamos
que é por estes motivos necessária um reforma deste tribunal, tanto no plano
orgânico como no processual, por forma a continuar a desempenhar o seu papel no
sistema desenhado pelo art. 209.º da CRP. A primeira justificação que
encontramos para esta tão necessária reforma é que se encontra ainda
parcialmente em vigor um diploma de 1931: o DL n.º19243, de 16/1. Os seus
preceitos revelam-se há muito tempo desadequados quando comparados com o
restante direito processual administrativo, sendo difícil a determinação daqueles
que ainda não se encontram derrogados e arriscada a interpretação actualista à
qual devem ser submetidos os restantes.
Se a presidência do Tribunal de Conflitos tiver que vir a pertencer
sempre a um dos presidentes dos dois Supremos Tribunais, parece preferível que continue
a ser atribuída ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo[6],
já que a delimitação das competências jurisdicionais se faz em regra, tendo por
base conceitos e formulações de Direito Administrativo, com os quais aquele
tem, devido às suas funções, maior facilidade[7].
O principal tópico de uma reforma neste tribunal deveria
consistir na criação de condições de estabilidade na participação daqueles que
o compõem, já que o actual método está longe de proporcionar a desejável
consistência da jurisprudência do Tribunal de Conflitos. Esta consistência
requer continuidade na tarefa de julgar conflitos, de modo a que os juízes
possam adquirir uma visão global dos problemas de fundo gerados quanto à
delimitação entre o Direito Administrativo e o Direito Privado, sendo óbvio que
a constante variação dos juízes tende a propiciar consideráveis oscilações de
jurisprudência[8].
O Tribunal dos Conflitos
no Direito Comparado
Um diferente plano de reflexão concerne às virtualidades do Tribunal
dos Conflitos como método de solução dos conflitos de jurisdição. O Direito Comparado
mostra-nos que esse método não é o único concebível. Importa pois indagar sobre
se é aquele que mais convém[9].
Um modo distinto de obter decisões relativas à resolução de
conflitos, sem instituir Tribunais de Conflitos consiste em conceder
competência para tal ao supremo tribunal da ordem jurisdicional comum, hipótese
que é aplicada em Itália. Outro tipo de solução é a colhida no Direito Alemão[10],
que se apoia no princípio da prioridade.
Nos termos da lei alemã, a decisão com força de caso julgado de qualquer
tribunal que tenha admitido a sua competência para apreciar um caso concreto
vincula os restantes tribunais, incluindo os das outras ordens jurisdicionais.
Se, pelo contrário, o tribunal perante o qual a acção foi proposta se
considerar incompetente, remete, por sua vez, o processo para o tribunal que
considera competente, depois de ter ouvido as partes. O tribunal que recebe o
processo fica vinculado pela decisão do primeiro tribunal quanto à sua própria
competência[11].
O método dos Tribunais dos Conflitos parece ser, deste modo, preferível quando
comparado com os métodos supra referidos, já que o sistema, ao assentar na
existência de ordens jurisdicionais separadas, não deve subordinar
uma delas às outras em qualquer questão que poderá ser suscitada,
que é o que define os limites das respectivas competências materiais.
Breve Análise Jurisprudencial[12]
Neste
acórdão estamos perante a pronúncia do Tribunal dos Conflitos sobre um conflito
de jurisdição (negativo - cfr. o art. 109º do CPC) entre o Julgado de Paz do
Porto e o Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, já que ambos declinaram
a competência própria para conhecer de uma acção de condenação, ao reconhecerem
reciprocamente essa mesma competência ao outro tribunal.
Este conflito
é de jurisdição (e não de competência) já que tanto o Tribunal de Pequena
Instância Cível do Porto como o Julgado de Paz são tribunais, sendo que o
primeiro é um tribunal judicial (art. 81º, n.º 2, al. a, da Lei de Organização
do Sistema Judiciário), e o segundo, apesar de não ser um tribunal judicial é ainda
assim um tribunal, como decorre do art. 209º da CRP que, ao aludir aos diversos
tipos de tribunais, prevê no seu n.º 2 os Julgados de Paz.
Apesar de
não existir nenhuma disposição legal a tutelar quais os conflitos que devem ser
resolvidos por este tribunal, é pacífico na Doutrina que o sentido normativo delimitador
do âmbito de competência do Tribunal dos Conflitos continua a ser (para os
conflitos de jurisdição) suscitado entre as autoridades e tribunais
administrativos e entre aquelas ou estes últimos e os tribunais judiciais. Até
porque, de acordo com o acórdão do STJ de 18/11/2004, o art. 59º do Decreto n.º
19.243 deve ser actualmente interpretado por forma a ver-se, naquela sua
referência às «autoridades administrativas», uma forte alusão aos juízes dos
tribunais administrativos e fiscais.
Cumpre-nos
agora verificar quem deve resolver este conflito, se o Tribunal dos Conflitos,
se o STJ. Segundo o art. 110.º/1 do CPC, “depende” dos casos, sendo que a
competência do STJ para resolver conflitos de jurisdição é residual – já que o
este só conhece «dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao tribunal
dos conflitos». Pela primeira parte do n.º 3 do art. 62.º da Lei da Organização
do Sistema Judiciário, compete ainda ao Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao tribunal
dos conflitos.
Deste modo, resta
avaliar se o Tribunal dos Conflitos tem competência para este caso, sendo a
resposta a esta avaliação negativa, pois os julgados de paz não podem ser encarados
como uma modalidade da Administração, nem incluídos nos tribunais
administrativos e fiscais, não cabendo assim num dos indispensáveis pólos (ou
Tribunal Administrativo, ou Tribunal Judicial), de cujo confronto depende a
competência do Tribunal dos Conflitos. Chega-se assim à conclusão que este
conflito não se insere na competência deste tribunal, dependendo a sua
resolução do STJ, tendo esta decisão tem um valor definitivo já que “os
acórdãos sobre os conflitos são irrevogáveis e não admitem recurso algum” (art.
101º do Decreto n.º 19.243, de 16/1/1931).
Serve, por
isso, o presente post para demonstrar a importância do Tribunal de Conflitos,
a sua interligação com diversos diplomas, como por exemplo, a CRP, o CPC, a
LOSJ, o CPTA, a sua relevância prática de modo a atingir a resolução do
caso concreto, em detrimento de outras soluções patentes nas diversas ordens jurídicas europeias, e ainda a imperativa necessidade de reformar a legislação deste tribunal, já que variadas disposições que tutelam esta matéria se encontram completamente desactualizadas (devido ao facto de terem mais de 80 anos, acrescendo ainda de que neste período, surgiram importantes concepções e alterações no que concerne o Direito Administrativo.
Bibliografia
i)
Monografias e Manuais
- AROSO
DE ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 2ªed., Coimbra,
Almedina, 2016
- DAMASCENO
CORREIA, António, “Tribunal dos Conflitos”, Coimbra, Almedina, 1987
- SÉRVULO
CORREIA, José Manuel, “A Reforma do Tribunal dos Conflitos”, Cadernos de
Justiça Administrativa n.º27, 2001
- VIEIRA
DE ANDRADE, José Carlos, “A Justiça Administrativa” (Lições), 6ªed., Coimbra, Almedina, 2004
ii)
Jurisprudência
Acórdão
do Tribunal dos Conflitos, Processo 026/09, Relator: Jorge Artur Madeira dos
Santos, Lisboa, 20 de Janeiro de 2010.
[1]
DAMASCENO CORREIA, António, “Tribunal dos Conflitos”, Coimbra, Almedina, 1987, p.
63.
[2]
O conflito é de jurisdição se os tribunais estiverem integrados em ordens
judiciais diferentes. (art.109.º/1, Código de Processo Civil - CPC)
[3]
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, “A Justiça Administrativa” (Lições), 6ªed.,
Coimbra, Almedina, 2004, p. 154.
[4] Para os conflitos de jurisdição com o
Tribunal de Contas, o Tribunal dos Conflitos é constituído por dois juízes do
STA e dois juízes do Tribunal de Contas, e é presidido pelo presidente do STJ
(cfr. art.1.º, n.º3, da Lei n.º98/97, de 26 de agosto), como refere AROSO DE
ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 2ªed., Coimbra, Almedina,
2016, p. 201.
[5]
AROSO DE ALMEIDA, op. Cit., p. 201.
[6]
Visando-se manter a paridade tendencial, este não teria, em princípio, voto nas
sessões de julgamento, cabendo-lhe, no entanto, por razões óbvias, voto de
desempate.
[7]
SÉRVULO CORREIA, op. Cit., p. 13.
[8]
A solução preferível seria a de os juízes do tribunal de conflitos exercerem
mandatos de três anos renováveis. Os juízes do supremo tribunal de justiça
elegeriam de entre eles três membros efectivos e um suplente, sendo que os
juízes do STA fariam o mesmo, como defende SÉRVULO CORREIA, José Manuel, “A
Reforma do Tribunal dos Conflitos”, Cadernos de Justiça Administrativa nº27,
2001, p. 13.
[9]SÉRVULO
CORREIA, op. Cit.,p. 3.
[10]
Não iremos falar no caso francês, já que o tribunal dos conflitos é uma criação
desta ordem jurídica.
[11]
Quanto a este tipo de solução, dificilmente se poderá contestar que ele deixa
um pouco ao sabor do acaso a titularidade da competência jurisdicional em cada
caso concreto, SÉRVULO CORREIA, op. Cit.,
p.12
[12] Acórdão
do Tribunal dos Conflitos, processo 026/09 de 20/01/2010.
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