Comentário ao acórdão nº 0897/14 de 03/10/2010 STA-
Legitimidade ativa na ação popular
No acórdão em análise, os recorrentes vêm reclamar, para a Secção de Contencioso Administrativo
do Supremo Tribunal Administrativo, da decisão proferida em despacho saneador,
pela qual se decidiu absolver os réus da instância, com base na ilegitimidade
dos autores.
Efetivamente, os
recorrentes pedem ao STA que a reclamação seja considerada procedente e que a
decisão de que reclamam seja revogada, permitindo, assim, ao abrigo do direito
de ação popular (previsto no art.2º/1 da Lei da Ação Popular, ora em diante,
LAP) e do art.73º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos antigo
(ora em diante, CPTA), a declaração de ilegalidade das “normas regulamentares” que
mandam aplicar o Acordo Ortográfico de 1990 (ora em diante, AO90) a todo o
sistema educativo público, nos casos concretos da “leccionação, avaliação
interna e exames” que digam respeito ao ano letivo 2014/2015 e anos letivos
posteriores.
Para tanto, os recorrentes
afirmam, em primeiro lugar, ser titulares dos interesses difusos em causa, à
luz dos arts.52/3,/a) da Constituição da República Portuguesa (ora em diante
CRP), 2º/1 da LAP, 31º do Código de Processo Civil (ora em diante CPC), 9º/2 e
73º/2 CPTA, pois entendiam que o assunto girava em torno da defesa, promoção e
preservação do património cultural (seria a Língua Portuguesa), assim como a
defesa de direitos fundamentais conexos, tais como a liberdade de expressão
escrita, a liberdade de aprender e de ensinar e o direito ao ensino, daí
decorrendo a sua legitimidade ativa.
Em segundo
lugar, os recorrentes alegam a má aplicação do Direito no Despacho na medida em
que para ser parte legítima na ação de impugnação de normas, à luz do art.73º/2
CPTA, não é preciso ser “lesado” pois este remete para as pessoas e entidades
do art.9º/2 CPTA. Assim, têm legitimidade ativa os “lesados” e a pessoas e
entidades do art.9º/2.
Em terceiro
lugar, os recorrentes consideram-se partes legítimas também por meio do requisito
dos “efeitos circunscritos ao caso concreto” (art.73º/2/in fine), embora
ressalvem que a norma referida deve ser interpretada tendo em conta a essência
da ação popular. De facto, alegam que uma interpretação literal de “caso
concreto” contradiz, por si só, o conceito de ação popular, bem como o seu
regime, isto porque estão em causa interesses difusos e porque numa ação
popular de impugnação de normas regulamentares, estão em causa normas gerais e
abstratas, pelo que não há propriamente um “caso concreto”.
Desta feita, os
recorrentes entenderam que se devia fazer uma interpretação restritiva do
art.73º/2 , de modo a articulá-lo com os arts.52º/3/a) CRP, 9º/2 do CPTA e 2º/1
da LAP e tendo particularmente em consideração, a razão de ser da remissão
feita para o art.9º/2 do CPTA. Assim sendo, a referência a “caso concreto” deve
ser interpretada de forma diferente, consoante estejamos perante ações de
impugnação de normas intentadas pelo lesado ou, como seria o caso em apreço,
ações populares de impugnação de normas intentadas pelas pessoas ou entidades
do art.9º/2 do CPTA.
Os recorrentes
concluem que, das duas uma: ou o art.73º/2 é interpretado restritivamente pelas
razões acima expostas, com uma ideia de “caso concreto” lato sensu no que toca
às entidades do art.9º/2, ex vi 73º/2 do CPTA, por forma a abranger qualquer
situação que diga respeito a interesses difusos que, nos termos da CRP e da
LAP, permitam o recurso à ação popular; ou, a título subsidiário, o art.73º/2
do CPTA no que toca às pessoas e entidades do art.9º/2 deve considerar-se não
escrito, aplicando-se as regras gerais de legitimidade para ações populares.
Em quarto e
último lugar, os recorrentes alegam a inconstitucionalidade do despacho
saneador na medida em que não seria admissível que a lei ordinária restrinja de
tal modo as finalidades de proteção de valores e interesses considerados pela
norma constitucional. De facto, quando o legislador constitucional remete para
a lei ordinária não pretende passar-lhe um “cheque em branco”, devendo antes
manter-se os traços característicos da ação popular (art.52º/3/a) CRP) tal como
consagrado na Constituição (“...nada na
Constituição, em particular no artigo 52º, nº3, autoriza o legislador a
consagrar, em abstracto, na lei ordinária, o direito de acção popular (no artigo 2º, nº1, da LAP, 9º, nº2, do CPTA) para depois, numa norma «singular» (artigo 73º, nº2, do CPTA), restringir
intolerável e paradoxalmente a sua efectividade à existência de um caso
concreto (o que desvirtua
integralmente um instituto que é dirigido não à tutela de casos concretos, mas
à tutela de interesses difusos)”). Simultaneamente, é alegada a violação da
dimensão objetiva do direito de ação popular, nomeadamente a efetividade do
princípio da legalidade administrativa, o princípio do Estado de Direito, os
princípios da unidade e da coerência do sistema jurídico e o princípio da
igualdade.
Por seu lado, o STA reconheceu que os recorrentes
eram, de facto, titulares de interesses difusos, à luz dos arts. 52º/3/a) da
CRP, 2º/1 da LAP e 9º/2 do CPTA mas entendeu que, estando em causa a
desaplicação de normas com efeitos circunscritos ao caso concreto, apenas o
lesado ou as entidades do art.9º/2, enquanto lesadas, teriam legitimidade ativa
para formular um pedido destes, com fundamento em ilegalidade.
O STA acrescenta, ainda, que não parece que o
legislador se tenha esquecido de referir , no art.73º/2, a legitimidade de
“qualquer pessoa” a que o art.9º/2 alude, apenas ficando pelas “entidades do
art.9º/2” e que, na declaração de ilegalidade de normas com efeitos
circunscritos ao caso concreto, o legislador terá atribuído legitimidade ativa
ao “lesado” e às “entidades referidas no nº2 do art.9º”, pelo que, numa lógica
subjetiva, estaria aqui em causa a proteção de direitos e interesses particulares
(dimensão subjetiva que, no entender do tribunal, está patente na letra do
art.73º/2 que apenas se refere ao “lesado” e às “entidades” do art.9º/2,
deixando, portanto, de fora “qualquer pessoa”). Já na declaração de ilegalidade
de normas com força obrigatória geral, o tribunal entendeu que estamos numa
dimensão objetiva, que tem em vista a defesa da legalidade e do interesse
pública, através da atribuição preferencial da legitimidade ao autor público- o
Ministério Público.
Neste sentido, o STA considerou que a dimensão
subjetiva na base da legitimidade do art.73º/2 muito dificilmente será
conciliável com a ação popular que, contrariamente, é um processo de índole
objetivista e tem na sua base a defesa da legalidade e do interesse público
seja ele qual for.
Posto isto, o tribunal entendeu que os autores
populares não tinham legitimidade ativa, quer na perspetiva objetiva, desta vez
de caso concreto, quer na perspetiva subjetiva, de lesado. Quanto a esta
perspetiva objetiva, entendeu-se que a “desaplicação” das normas regulamentares
a todo o “sistema educativo público”, apenas tendo sido fixado o termo a quo da
mesma, dificilmente seria compatível com a limitação da sua aplicação ao “caso
concreto”, isto porque, em boa verdade, as leccionações e avaliações, internas
e externas, constituem a totalidade da atividade do ensino público, o que,
juntamente com a falta de um limite temporal de aplicação, não qualifica como
“caso concreto”.
O STA acabou por concluir que a interpretação que
fez do art.73º/2 não viola, contrariamente ao que alegaram os autores, o
“conteúdo essencial do direito de ação popular” do art.52º/3 da CRP, na medida
em que este direito é conferido nos casos e termos previstos na lei,
acrescentando, ainda, que seria sempre possível impugnar as normas pela via do
art.73º/1 ou 73º/3. Assim, a restrição da legitimidade ao “lesado ou qualquer
das entidades referidas no nº2 do art.9” decorre da natureza das coisas pois a
legitimidade popular e a declaração de ilegalidade de norma sem força
obrigatória geral são inconciliáveis.
Tendo por base
estes fundamentos, o STA considerou a reclamação improcedente.
Quanto à minha
opinião, focar-me-ei apenas na questão da legitimidade que foi a questão que me
propus abordar com este post.
Como
sabemos, a ação popular, prevista no art.9º/2 CPTA, atribui o direito de ação
popular (constitucionalmente consagrado no art.53º/3/a) CRP) a particulares, a
determinadas pessoas coletivas, a autarquias locais e ao Ministério Público, de
modo a que estes intervenham em processos destinados à defesa de valores e bens
constitucionalmente protegidos, para defender a legalidade, sem ser preciso um
interesse pessoal[1], podendo uma pessoa ser parte legítima na ação sem ser
titular das posições substantivas que o processo tem como objetivo tutelar,
havendo, portanto, uma ideia de independência do interesse processual em
relação ao interesse substancial.[2]
Dado que a ação popular alarga
a legitimidade processual e é aferida em termos gerais e abstratos, para ser
autor legítimo basta estar inserido numa categoria de sujeitos e atuar na
defesa da legalidade e de bens constitucionalmente protegidos; ou seja, só pelo
facto de estar inserido numa dada categoria delimitada de sujeitos, atribui-se
um direito de ação judicial.[3]
Fazendo uma breve
referência ao art.2º/1 da LAP, norma concretizadora do art.9º/2, são titulares
do direito de ação popular qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e
políticos, independentemente de haver interesse direto e pessoal na demanda.
Deve-se, ainda,
salientar que os interesses que a ação popular visa defender são interesses
difusos, isto é, interesses dispersos
por toda a comunidade, interesses que pertencem a todos e a cada um, de tal
forma que há uma pluralidade inseparável de titulares.[4] Pegando
nas palavras dos Profs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, consistem na “ refracção em cada indivíduo de interesses unitários da
comunidade, global e complexivamente considerada”. [5]
Ora, no caso em apreço, havia interesses
difusos (nomeadamente, a proteção do património cultural), o que me leva a crer
que a norma da versão anterior do art.73º/2 devia ter sido interpretada em
harmonia com a própria essência da ação popular. Ou seja, sendo certo que o
artigo suprareferido não mencionava a possibilidade de “qualquer pessoa”
impugnar uma norma com efeitos circunscritos ao caso concreto, não me parece
que seja razão suficiente para criar obstáculos ao direito de ação popular.
Da mesma forma, o facto de não
haver propriamente um “caso concreto” tão pouco parece argumento suficiente
para afastar um direito constitucionalmente concedido aos particulares. De facto, a ideia de que deve haver um “caso
concreto” numa ação que visa defender interesses indivisíveis não faz qualquer
sentido e constitui, tal e qual como foi alegado pelos autores, “um
contra-senso”, já para não dizer que diminui drasticamente a legitimidade ativa
do art.9º/2 (cujo objetivo é, curiosamente, estender os casos de legitimidade,
dispensando a invocação de uma lesão!).
Por outro lado, há que ter em consideração
que o AO90, a ser aplicado, produz efeitos que afetam um grande número de
pessoas, não se confinando a um mero grupo nem a situações concretas relativas
a determinados sujeitos, o que justifica ainda mais o direito de ação pública.
Assim,
parece-me que os autores tinham, de facto, legitimidade ativa na medida em que
a defesa do património cultural escrito (a língua portuguesa) pode ser feita
através da ação popular, sendo que esta possibilidade não devia ter sido posta
em causa por meras questões interpretativas da lei ordinária.
Efetivamente, tratando-se de um direito fundamental de atuação política, seja a nível individual, seja a nível coletivo, o direito de ação popular não devia ter sido restringido como foi, pois que sentido faria a sua consagração na Constituição se, por lapso do legislador ordinário ou por má técnica legislativa, pudessem os particulares ver-se privados do seu direito de, enquanto cidadãos e pelo simples facto de serem cidadãos, impugnarem normas que afetam interesses de todos e cada um de nós? Quanto a esta última questão, talvez tenha sido para evitar mais problemas destes que o legislador, na quarta alteração feita ao CPTA (DL nº214-G/2015, de 02.10), veio atribuir expressamente legitimidade para pedir ao tribunal a declaração de ilegalidade de norma “com força obrigatória geral” às “pessoas e entidades nos termos do nº2 do artigo 9º”.
Efetivamente, tratando-se de um direito fundamental de atuação política, seja a nível individual, seja a nível coletivo, o direito de ação popular não devia ter sido restringido como foi, pois que sentido faria a sua consagração na Constituição se, por lapso do legislador ordinário ou por má técnica legislativa, pudessem os particulares ver-se privados do seu direito de, enquanto cidadãos e pelo simples facto de serem cidadãos, impugnarem normas que afetam interesses de todos e cada um de nós? Quanto a esta última questão, talvez tenha sido para evitar mais problemas destes que o legislador, na quarta alteração feita ao CPTA (DL nº214-G/2015, de 02.10), veio atribuir expressamente legitimidade para pedir ao tribunal a declaração de ilegalidade de norma “com força obrigatória geral” às “pessoas e entidades nos termos do nº2 do artigo 9º”.
Mariafé
Malca
Aluna
nº 24420
[1]
PEREIRA DA SILVA, VASCO, O
contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª edição, Almedina,
2009, pp. 368-369.
[2] COTRIM DOS SANTOS, LUISA, A
ação popular ecológica no Contencioso Administrativo, FDL, 1999/2000, p.18.
[3]ROBIN DE ANDRADE, JOSÉ, A ação popular no Direito
Administrativo português, Coimbra editora, Coimbra, 1967, pp. 27-28.
[4] OTERO,
PAULO- Manual de Direito Administrativo, Volume I, 2013, p.241.
[5]CANOTILHO, GOMES, MOREIRA, VITAL- “Constituição da República Anotada”, 4ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1º Volume,
pp. 696-699.
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