terça-feira, 1 de novembro de 2016

Comentário ao acórdao nº0897/14 de 03/10/2010 STA- Legitimidade ativa na ação popular

Comentário ao acórdão nº 0897/14 de 03/10/2010 STA- Legitimidade ativa na ação popular

No acórdão em análise, os recorrentes vêm reclamar, para a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, da decisão proferida em despacho saneador, pela qual se decidiu absolver os réus da instância, com base na ilegitimidade dos autores.

Efetivamente, os recorrentes pedem ao STA que a reclamação seja considerada procedente e que a decisão de que reclamam seja revogada, permitindo, assim, ao abrigo do direito de ação popular (previsto no art.2º/1 da Lei da Ação Popular, ora em diante, LAP) e do art.73º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos antigo (ora em diante, CPTA), a declaração de ilegalidade das “normas regulamentares” que mandam aplicar o Acordo Ortográfico de 1990 (ora em diante, AO90) a todo o sistema educativo público, nos casos concretos da “leccionação, avaliação interna e exames” que digam respeito ao ano letivo 2014/2015 e anos letivos posteriores.

Para tanto, os recorrentes afirmam, em primeiro lugar, ser titulares dos interesses difusos em causa, à luz dos arts.52/3,/a) da Constituição da República Portuguesa (ora em diante CRP), 2º/1 da LAP, 31º do Código de Processo Civil (ora em diante CPC), 9º/2 e 73º/2 CPTA, pois entendiam que o assunto girava em torno da defesa, promoção e preservação do património cultural (seria a Língua Portuguesa), assim como a defesa de direitos fundamentais conexos, tais como a liberdade de expressão escrita, a liberdade de aprender e de ensinar e o direito ao ensino, daí decorrendo a sua legitimidade ativa.

Em segundo lugar, os recorrentes alegam a má aplicação do Direito no Despacho na medida em que para ser parte legítima na ação de impugnação de normas, à luz do art.73º/2 CPTA, não é preciso ser “lesado” pois este remete para as pessoas e entidades do art.9º/2 CPTA. Assim, têm legitimidade ativa os “lesados” e a pessoas e entidades do art.9º/2.

Em terceiro lugar, os recorrentes consideram-se partes legítimas também por meio do requisito dos “efeitos circunscritos ao caso concreto” (art.73º/2/in fine), embora ressalvem que a norma referida deve ser interpretada tendo em conta a essência da ação popular. De facto, alegam que uma interpretação literal de “caso concreto” contradiz, por si só, o conceito de ação popular, bem como o seu regime, isto porque estão em causa interesses difusos e porque numa ação popular de impugnação de normas regulamentares, estão em causa normas gerais e abstratas, pelo que não há propriamente um “caso concreto”.

Desta feita, os recorrentes entenderam que se devia fazer uma interpretação restritiva do art.73º/2 , de modo a articulá-lo com os arts.52º/3/a) CRP, 9º/2 do CPTA e 2º/1 da LAP e tendo particularmente em consideração, a razão de ser da remissão feita para o art.9º/2 do CPTA. Assim sendo, a referência a “caso concreto” deve ser interpretada de forma diferente, consoante estejamos perante ações de impugnação de normas intentadas pelo lesado ou, como seria o caso em apreço, ações populares de impugnação de normas intentadas pelas pessoas ou entidades do art.9º/2 do CPTA.

Os recorrentes concluem que, das duas uma: ou o art.73º/2 é interpretado restritivamente pelas razões acima expostas, com uma ideia de “caso concreto” lato sensu no que toca às entidades do art.9º/2, ex vi 73º/2 do CPTA, por forma a abranger qualquer situação que diga respeito a interesses difusos que, nos termos da CRP e da LAP, permitam o recurso à ação popular; ou, a título subsidiário, o art.73º/2 do CPTA no que toca às pessoas e entidades do art.9º/2 deve considerar-se não escrito, aplicando-se as regras gerais de legitimidade para ações populares.

Em quarto e último lugar, os recorrentes alegam a inconstitucionalidade do despacho saneador na medida em que não seria admissível que a lei ordinária restrinja de tal modo as finalidades de proteção de valores e interesses considerados pela norma constitucional. De facto, quando o legislador constitucional remete para a lei ordinária não pretende passar-lhe um “cheque em branco”, devendo antes manter-se os traços característicos da ação popular (art.52º/3/a) CRP) tal como consagrado na Constituição (“...nada na Constituição, em particular no artigo 52º, nº3, autoriza o legislador a consagrar, em abstracto, na lei ordinária, o direito de acção popular (no artigo 2º, nº1, da LAP, 9º, nº2, do CPTA) para depois, numa norma «singular» (artigo 73º, nº2, do CPTA), restringir intolerável e paradoxalmente a sua efectividade à existência de um caso concreto (o que desvirtua integralmente um instituto que é dirigido não à tutela de casos concretos, mas à tutela de interesses difusos)”). Simultaneamente, é alegada a violação da dimensão objetiva do direito de ação popular, nomeadamente a efetividade do princípio da legalidade administrativa, o princípio do Estado de Direito, os princípios da unidade e da coerência do sistema jurídico e o princípio da igualdade.

Por seu lado, o STA reconheceu que os recorrentes eram, de facto, titulares de interesses difusos, à luz dos arts. 52º/3/a) da CRP, 2º/1 da LAP e 9º/2 do CPTA mas entendeu que, estando em causa a desaplicação de normas com efeitos circunscritos ao caso concreto, apenas o lesado ou as entidades do art.9º/2, enquanto lesadas, teriam legitimidade ativa para formular um pedido destes, com fundamento em ilegalidade.

O STA acrescenta, ainda, que não parece que o legislador se tenha esquecido de referir , no art.73º/2, a legitimidade de “qualquer pessoa” a que o art.9º/2 alude, apenas ficando pelas “entidades do art.9º/2” e que, na declaração de ilegalidade de normas com efeitos circunscritos ao caso concreto, o legislador terá atribuído legitimidade ativa ao “lesado” e às “entidades referidas no nº2 do art.9º”, pelo que, numa lógica subjetiva, estaria aqui em causa a proteção de direitos e interesses particulares (dimensão subjetiva que, no entender do tribunal, está patente na letra do art.73º/2 que apenas se refere ao “lesado” e às “entidades” do art.9º/2, deixando, portanto, de fora “qualquer pessoa”). Já na declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral, o tribunal entendeu que estamos numa dimensão objetiva, que tem em vista a defesa da legalidade e do interesse pública, através da atribuição preferencial da legitimidade ao autor público- o Ministério Público.

Neste sentido, o STA considerou que a dimensão subjetiva na base da legitimidade do art.73º/2 muito dificilmente será conciliável com a ação popular que, contrariamente, é um processo de índole objetivista e tem na sua base a defesa da legalidade e do interesse público seja ele qual for.

Posto isto, o tribunal entendeu que os autores populares não tinham legitimidade ativa, quer na perspetiva objetiva, desta vez de caso concreto, quer na perspetiva subjetiva, de lesado. Quanto a esta perspetiva objetiva, entendeu-se que a “desaplicação” das normas regulamentares a todo o “sistema educativo público”, apenas tendo sido fixado o termo a quo da mesma, dificilmente seria compatível com a limitação da sua aplicação ao “caso concreto”, isto porque, em boa verdade, as leccionações e avaliações, internas e externas, constituem a totalidade da atividade do ensino público, o que, juntamente com a falta de um limite temporal de aplicação, não qualifica como “caso concreto”.

O STA acabou por concluir que a interpretação que fez do art.73º/2 não viola, contrariamente ao que alegaram os autores, o “conteúdo essencial do direito de ação popular” do art.52º/3 da CRP, na medida em que este direito é conferido nos casos e termos previstos na lei, acrescentando, ainda, que seria sempre possível impugnar as normas pela via do art.73º/1 ou 73º/3. Assim, a restrição da legitimidade ao “lesado ou qualquer das entidades referidas no nº2 do art.9” decorre da natureza das coisas pois a legitimidade popular e a declaração de ilegalidade de norma sem força obrigatória geral são inconciliáveis.

Tendo por base estes fundamentos, o STA considerou a reclamação improcedente.

Quanto à minha opinião, focar-me-ei apenas na questão da legitimidade que foi a questão que me propus abordar com este post.

Como sabemos, a ação popular, prevista no art.9º/2 CPTA, atribui o direito de ação popular (constitucionalmente consagrado no art.53º/3/a) CRP) a particulares, a determinadas pessoas coletivas, a autarquias locais e ao Ministério Público, de modo a que estes intervenham em processos destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, para defender a legalidade, sem ser preciso um interesse pessoal[1], podendo uma pessoa ser parte legítima na ação sem ser titular das posições substantivas que o processo tem como objetivo tutelar, havendo, portanto, uma ideia de independência do interesse processual em relação ao interesse substancial.[2]

Dado que a ação popular alarga a legitimidade processual e é aferida em termos gerais e abstratos, para ser autor legítimo basta estar inserido numa categoria de sujeitos e atuar na defesa da legalidade e de bens constitucionalmente protegidos; ou seja, só pelo facto de estar inserido numa dada categoria delimitada de sujeitos, atribui-se um direito de ação judicial.[3]

Fazendo uma breve referência ao art.2º/1 da LAP, norma concretizadora do art.9º/2, são titulares do direito de ação popular qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de haver interesse direto e pessoal na demanda.

Deve-se, ainda, salientar que os interesses que a ação popular visa defender são interesses difusos, isto é,  interesses dispersos por toda a comunidade, interesses que pertencem a todos e a cada um, de tal forma que há uma pluralidade inseparável de titulares.[4] Pegando nas palavras dos Profs. Vital Moreira e Gomes Canotilho,  consistem na refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada”. [5]

Ora, no caso em apreço, havia interesses difusos (nomeadamente, a proteção do património cultural), o que me leva a crer que a norma da versão anterior do art.73º/2 devia ter sido interpretada em harmonia com a própria essência da ação popular. Ou seja, sendo certo que o artigo suprareferido não mencionava a possibilidade de “qualquer pessoa” impugnar uma norma com efeitos circunscritos ao caso concreto, não me parece que seja razão suficiente para criar obstáculos ao direito de ação popular.

Da mesma forma, o facto de não haver propriamente um “caso concreto” tão pouco parece argumento suficiente para afastar um direito constitucionalmente concedido aos particulares. De facto, a ideia de que deve haver um “caso concreto” numa ação que visa defender interesses indivisíveis não faz qualquer sentido e constitui, tal e qual como foi alegado pelos autores, “um contra-senso”, já para não dizer que diminui drasticamente a legitimidade ativa do art.9º/2 (cujo objetivo é, curiosamente, estender os casos de legitimidade, dispensando a invocação de uma lesão!).

Por outro lado, há que ter em consideração que o AO90, a ser aplicado, produz efeitos que afetam um grande número de pessoas, não se confinando a um mero grupo nem a situações concretas relativas a determinados sujeitos, o que justifica ainda mais o direito de ação pública.

Assim, parece-me que os autores tinham, de facto, legitimidade ativa na medida em que a defesa do património cultural escrito (a língua portuguesa) pode ser feita através da ação popular, sendo que esta possibilidade não devia ter sido posta em causa por meras questões interpretativas da lei ordinária.

Efetivamente, tratando-se de um direito fundamental de atuação política, seja a nível individual, seja a nível coletivo, o direito de ação popular não devia ter sido restringido como foi, pois que sentido faria a sua consagração na Constituição se, por lapso do legislador ordinário ou por má técnica legislativa, pudessem os particulares ver-se privados do seu direito de, enquanto cidadãos e pelo simples facto de serem cidadãos, impugnarem normas que afetam interesses de todos e cada um de nós? Quanto a esta última questão, talvez tenha sido para evitar mais problemas destes que o legislador, na quarta alteração feita ao CPTA (DL nº214-G/2015, de 02.10), veio atribuir expressamente legitimidade para pedir ao tribunal a declaração de ilegalidade de norma “com força obrigatória geral” às pessoas e entidades nos termos do nº2 do artigo 9º”.

Mariafé Malca
Aluna nº 24420




[1] PEREIRA DA SILVA, VASCO, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, pp. 368-369.

[2] COTRIM DOS SANTOS, LUISA, A ação popular ecológica no Contencioso Administrativo, FDL, 1999/2000, p.18.
[3]ROBIN DE ANDRADE, JOSÉ, A ação popular no Direito Administrativo português, Coimbra editora, Coimbra, 1967, pp. 27-28.
[4] OTERO, PAULO- Manual de Direito Administrativo, Volume I, 2013, p.241.
[5]CANOTILHO, GOMES, MOREIRA, VITAL- “Constituição da República Anotada”, 4ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1º Volume, pp. 696-699.

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