sexta-feira, 18 de novembro de 2016

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO DE 19 / 6 / 1990

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO DE 19 / 6 / 1990 — PROCESSO C-213/89 [1]


The Queen e Secretary of State for Transport, ex parte: Factortame Ltd e outros



I- Introdução

A edificação da União Europeia e a necessária integração levou a que os estados implementassem reformas para se adaptarem às exigências do Direito da União Europeia, bem como às constantes transformações. Este fenómeno levou a uma europeização das Constituições dos estados membros, [2] tendo sido de tal forma relevante que existem hoje autores a admitir a existência de um verdadeiro Direito Constitucional Europeu concretizado. [3] É nestes termos que o processo de integração operou alterações profundas no seio dos Estados membros, surgindo um Direito Administrativo Europeu ou um “novo” [4] Processo Administrativo Europeu, levando a importantes reformas do Contencioso Administrativo. Pode por isso concluir-se que o processo de integração europeia levou a que no caso Português o Contencioso Administrativo fosse influenciado e moldado pelo Direito da União Europeia. O Professor Vasco Pereira da Silva diz mesmo que “a “integração” das fontes e das instituições administrativas europeias e dos Estados-membros, origina uma «progressiva comunitarização dos modelos administrativos nacionais» ” [5]. Após estas conclusões não será obviamente difícil concluir que muitas das transformações operadas se deram por via de jurisprudência do Tribunal de Justiça. Assim alguns Princípios Fundamentais hoje assentes na ordem jurídica europeia tiveram a sua “afirmação” no espectro lançado pelo Tribunal de Justiça. Hoje grande parte destes princípios tem consagração legislativa.          
É hoje dado como assente que o Direito Administrativo Europeu, assenta necessariamente na garantia de uma tutela jurisdicional efetiva, podendo-se daqui retirar o direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, o direito de obter uma decisão judicial em prazo razoável e equitativo bem como o direito à efetividade das sentenças.      
A necessidade da garantia da tutela jurisdicional efetiva não obriga somente as instituições da União Europeia, mas também, as instâncias nacionais dos estados membros, por exigência dos princípios do primado e da tutela jurisdicional efetiva. É necessário garantir que as pretensões dos particulares decorrentes do Direito da União sejam salvaguardadas, podendo ser concedidas providências cautelares. É neste ponto que o Acórdão do Tribunal de Justiça, Factortame, emprega toda a sua relevância, pois discutiu-se a possibilidade de os órgãos jurisdicionais nos ordenamentos jurídicos internos concederem uma providência cautelar para proteger direitos conferidos pelo Direito da União Europeia. 


         II- Acórdão Factortame


Levantava-se no Acórdão um problema com uma alteração legislativa no Reino Unido relativa ao registo de navios nos termos da qual alguns dos navios de que as requerentes eram proprietárias iam ficar privados do direito de pescar. 
Assim, solicitaram ao High Court of Justice, a compatibilidade dessa lei com o direito da União Europeia e, até ser proferida a decisão definitiva, requereram a tutela providência cautelar. 
Na sua decisão, a Divisional Court decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça um pedido prejudicial sobre as questões de Direito da União e ordenou, a título cautelar, a suspensão da lei em causa relativamente às recorrentes. Em sede de recurso, a Court of Appeal considerou que, nos termos do direito interno britânico, os órgãos jurisdicionais não tinham o poder de suspender provisoriamente a aplicação das leis e, em consequência, anulou a decisão da Divisional Court
Em resposta, o Tribunal de Justiça lembrou que já no seu Acórdão Simmenthal [6] tinha afirmado o princípio da efetividade do Direito da União, pelo qual as autoridades nacionais têm que garantir o efeito útil das disposições europeias desde a sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade. Na decisão o Tribunal deixou claro: “O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.”



III- Conclusões

O Acórdão Factortame é um marco obrigatório no quadro dos princípios de Direito da União Europeia. Da fundamentação do Acórdão facilmente se conclui que ali se reafirmam os princípios do primado, mediante o qual a aplicação do direito nacional que seja incompatível com o Direito da União deve ser afastada e, consequentemente, reparados os danos que a sua aplicação provocou, e da efetividade, que impõe que os Estados-Membros devem garantir o efeito útil e a plena aplicação do direito da União Europeia. Assim, neste Acórdão, o Tribunal de Justiça firma a ideia de que, se uma norma interna não consagrar a possibilidade de o juiz nacional decretar uma providência cautelar num caso concreto, o juiz deve desaplicar essa norma e assegurar a aplicação do Direito da União Europeia, garantindo a tutela jurisdicional efetiva. 
A jurisprudência seguida neste Acórdão foi depois reafirmada no Acórdão Zuckerfabrik, Atlanta, e no Acórdão Unibet 2007, onde, mais se defendeu que a concessão das providências cautelares para tutelar danos irreparáveis nos direitos dos particulares decorrentes do Direito da União Europeia.


João Martinho Marques



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[2] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina.      

[3] ROQUE, Miguel Prata, O Direito Administrativo Europeu, pág. 950 e ss

[4] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina, pág. 107       

[5] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina, pág. 111



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