Em Portugal, a ordem de jurisdição
é dual, tendo de um lado a ordem dos tribunais judiciais, e do outro a ordem
dos tribunais administrativos e fiscais. A ordem dos tribunais judiciais é
residual, isto é, pertence-lhe julgar tudo o que não seja da competência dos
tribunais administrativos e fiscais. Esta dualidade levanta um problema de
fronteira, sendo necessário criar um critério que nos permita delimitar a
competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais e os tribunais
administrativos e fiscais.
A Constituição da
República Portuguesa distingue, quanto à competência de cada uma das categorias
de tribunais, os tribunais judiciais, que “são os tribunais comuns em matéria
cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras
ordens judiciais” [211º,
nº 1], e os
tribunais administrativos e fiscais, a quem compete “o julgamento das ações e
recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais” [212º, nº 3, da CRP].
O artigo 212.º, nº. 3, da Constituição da República
Portuguesa, estabelece o critério definido a título constitucional. Este
critério assenta numa lógica de dependência do direito processual em relação ao
direito substantivo, sendo que na base do litigio temos necessariamente uma
relação jurídica administrativa.
2. Relação
jurídica administrativa
Levanta-se agora outra questão: saber o que é
uma relação jurídica administrativa. Este conceito, é em ultimo termo uma
cláusula geral em sentido técnico. Por definição, as cláusulas gerais são
conceitos que não têm fronteiras e vão sendo concretizados no tempo e no espaço
de forma progressiva. Desta forma, o conceito de relação jurídica
administrativa tem sofrido alterações ao longo do tempo.
Este conceito, pode ser tomado nos seguintes sentidos:
i) sentido subjectivo:
ii) sentido subjectivo;
iii) sentido funcional;
A relação jurídica administrativa é entendida
como uma relação “regulada por normas
de direito administrativo, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham
deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou alguns dos
intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de
relações de natureza privada” [ver Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto
Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, Almedina, 2005, página 15; Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, D. Quixote, 2009, Tomo III,
páginas 274 e seguintes; José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça
Administrativa, Almedina, 8ª edição, páginas 57 e 58].
Não é possível definir uma relação jurídica administrativa
em termos subjectivos, fazendo unicamente apelo à forma das pessoas colectivas
que se encontram na base do litígio. Conhecemos inúmeros casos em que estamos
perante a função administrativa, mas não de pessoas colectivas públicas, e sim
privadas. O melhor exemplo para ilustrar esta situação será o caso dos
concessionários, onde temos pessoas privadas ligadas à cessação, que exercem
indiscutivelmente uma função administrativa. Sendo que as relações que se
estabelecerem entre o concessionário e a actividade de outros particulares são,
inobstante a termos em cada um dos polos duas pessoas privadas, relações
jurídicas administrativas. Desta forma, pode-se concluir que a lei nos termos
em que está organizada, na jurisdição administrativa, desmente que o critério
possa ser subjectivo.
Neste sentido temos o Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º
031/15: “Ainda
que as partes não tivessem, expressamente, atribuído ao contrato natureza
administrativa, como aconteceu, a mesma adviria, igualmente, do facto de o
contrato ter sido celebrado, no exercício de funções, materialmente,
administrativas, por uma sociedade anónima de capitais, maioritariamente,
públicos, integrada no sector empresarial regional, concessionária de um
serviço público, com utilidade pública, com vista à realização de um interesse
público, sendo as empresas públicas regionais equiparadas a entidades
administrativas.”
E ainda, o Acórdão 025/15 do mesmo tribunal: “Este
Tribunal de Conflitos tem por várias vezes vindo a ser chamado a decidir
situações similares a esta, em que estava em causa saber qual a jurisdição
competente para julgar questões de responsabilidade extracontratual
relacionadas com acidentes de viação ocorridos em vias concessionadas, por
violação dos deveres decorrentes do contrato de concessão. A solução a dar-lhe
não tem seguido uma via única, sendo certo que é possível descortinar uma
posição maioritária que se tem vindo a afirmar, no sentido de que a jurisdição
administrativa é a competente para dirimir este tipo de litígios (ver,
entre outros, os acórdãos deste Tribunal de 30.05.13, Proc. n.º 017/13; de
27.02.14, Proc. n.º 048/13; 12.03.15, Proc. n.º 049/14; de 25.03.15, Proc. n.º
053/14; de 22.04.15, Proc. n.º 011/15; de 07.05.15, Proc. n.º 010/15; de
09.07.15, Proc. n.º 021/15; 12.11.15, Proc. n.º 24/15). Em
sentido diverso, atribuindo a competência para dirimir o tipo de litígios em
apreço aos tribunais comuns, existe, pelo menos, o Acórdão deste Tribunal de
Conflitos de 18.12.13, Proc. n.º 028/13, que estimou, num caso similar, que a
situação “não se enquadra juridicamente na previsão do art. 1.º, n.º 5, da Lei
n.º 67/2007”. Entendemos ser de subscrever a orientação maioritária,
considerando materialmente competente a jurisdição administrativa, alinhando,
portanto, pela argumentação que tem vindo a ser desenvolvida nos arestos
primeiramente citados.”
Não sendo o critério subjectivo suficiente, na nossa ordem
jurídica, para delimitar o conceito de relação jurídica administrativa,
costumam apontar-se outros critérios para tal efeito: o critério objectivo, que
aponta como relação jurídica administrativa aquela em que estiver envolvida o
Direito Administrativo, ou um conceito mais próximo deste, aquela em que
estiver em causa o exercício da função administrativa. Estas duas aproximações
levantam outra questão, saber o que é o Direito Administrativo e a função
administrativa. Por fim, temos o critério funcional que faz corresponder o carácter
“administrativo” da relação ao âmbito substancial da própria função
administrativa.
2.1 Importância do conceito de relação jurídica administrativa
O conceito de relação jurídica administrativa é bastante
importante, para além de ajudar a definir a fronteira da jurisdição
administrativa e judiciária, na linha de pensamento do Professor Doutor Vasco
Pereira da Silva este é um conceito que apresenta alguma ideologia. Segundo o
mesmo, se dissermos que entre a administração pública, ou entre quem exerce a
função administrativa, e os particulares, se estabelecem relações jurídicas,
estamos a ir contra a lógica mais tradicional da própria administração. Ou
seja, a administração não é só uma história de poder e autoridade, nem exerce
unilateral e soberanamente o seu poder sobre os particulares que se submetem ao
exercício do mesmo. O que se verifica, são relações jurídicas de parte a parte,
a existência de direitos e deveres, e sobretudo na perspectiva dos particulares
há direitos que não se podem menorizar contra a administração. Existe de facto
relações entre a administração pública e os particulares.
Apesar deste conceito ser bastante importante na delimitação
de litígios administrativos, era bastante inseguro recorrermos apenas a este. Existe
uma discussão doutrinária em torno deste conceito, pois importa saber se, o
mesmo, funciona em termos absolutos ou relativos.
Debruçamo-nos sobre esta discussão no momento em que, a Constituição
define o âmbito de acção dos tribunais administrativos e fiscais, referindo que
o mesmo integra os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Mas abrangerá, este âmbito, todos e apenas os litígios que emirjam de relações
administrativas, ou permitirá este conceito a existência de litígios que não
emirjam de relações jurídicas administrativas e pertençam aos tribunais administrativos?
Ou ainda, que existam litígios que emirjam de relações jurídicas
administrativas e não estejam nos tribunais jurídicos administrativos.
Um exemplo capaz de ilustrar esta realidade são
as expropriações, estas são dirimidas nos tribunais judiciais. Temos por
isso que "no tocante à extinção do direito de propriedade sobre
os bens que lhe pertenciam e ao nascimento do direito de propriedade da
entidade expropriante sobre eles, está o expropriado sujeito aos poderes de
autoridade da Administração, que actua precisamente no exercício desses
poderes, pelo que nos encontramos no domínio das relações jurídicas
administrativas; mas já não o está quanto ao aspecto da determinação concreta
do montante indemnizatório, em que a Administração actua despida da sua veste
autoritária para se colocar em situação de igualdade perante o particular no
litígio judicial destinado à fixação daquele montante, pelo que, nessa fase, já
não nos encontramos no domínio dessas relações" (Ac. STJ de 30/04/2002, no
Proc. 4196/01 da 6ª secção (relator Silva Salazar).
O entendimento do Tribunal Constitucional é de que esta
definição não é estanque, desta forma, existem situações que muito duvidosamente
são relações jurídicas administrativas, mas que ainda assim se encontram dentro
da área de jurisdição dos Tribunais Administrativos. Por outro lado, há
indiscutivelmente situações que são relações jurídicas administrativas e que
não se encontram no âmbito da jurisdição administrativa. Isto prova a tese do
conceito relativo de relação jurídica administrativa.
Desta forma, o ordenamento criou um elenco de tipologias de
classes de casos que pretendem concretizar o conceito de relação jurídica
administrativa. Esta solução foi conseguida através do artigo 4º. do ETAF, este
artigo elenca índices que nos permitem falar, ou não, de relações jurídica
administrativas.
Em 2015, procedeu-se à alteração do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), o que resultou na eliminação no artigo 1.º da
referência às “relações jurídicas administrativas e fiscais”, substituindo a
mesma pela remissão para os litígios que se encontram previstos no artigo 4.º
do ETAF. Podemos encontrar agora, o conceito de relação jurídica
administrativa, na alínea o), do nº1, do artigo 4.º do ETAF. Desta forma, o
artigo 1.º, n.º 1, do ETAF perde o seu carácter de cláusula geral e funciona
agora de forma residual.
Procura-se tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz
a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais
administrativos, por referência ao critério constitucional da “relação jurídica
administrativa”. A alteração é explicada com a intenção de clarificação dos “termos da relação que se estabelece entre o
artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da
jurisdição administrativa e fiscal” e a intenção de “fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza
administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos.” (Cfr. ponto 8
do preâmbulo do projecto de decreto-lei autorizado).
3. O
Tribunal dos Conflitos
Apesar da jurisdição em Portugal ser dual, existem situações
duvidosas quanto à jurisdição competente para julgar determinado litígio.
Estamos perante um conflito negativo de jurisdição, quando tanto a ordem
judicial, como a ordem administrativa, se arrogam incompetentes para julgar
determinado conflito. Contrariamente, teremos conflitos de jurisdição positiva
quando as duas jurisdições se arrogam competentes para julgar o litígio.
Nestes casos, é competente para resolver os conflitos entre
autoridades administrativas e judiciais o Tribunal dos Conflitos. Este tribunal
tem a particularidade de não existir, ou seja, não existe enquanto instituição,
trata-se assim de uma formação especial, criada ad hoc, funcionando como uma
espécie de tribunal arbitral.
Nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, do Código de
Processo Civil, “os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos,
pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos”, sendo que o
n.º 3 do mesmo preceito legal esclarece que “o processo a seguir no julgamento
dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o
estabelecido na respectiva legislação”, competindo ao Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não
pertença ao Tribunal dos Conflitos – artigo 62.º, n.º 3, da Lei da Organização
do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
O Tribunal dos Conflitos foi criado pelo Decreto n.º 19423,
de 16 de Janeiro de 1931, competindo-lhe, então, de acordo com o preceituado no
artigo 59.º, conhecer dos conflitos positivos ou negativos de jurisdição e
competência entre as autoridades administrativas e judiciais. Abrindo-se assim
um novo e curto período da organização da justiça administrativa. A justiça
administrativa fica entregue unicamente a três auditorias administrativas e ao
Supremo Conselho de Administração Pública.
Prevê-se ainda a criação deste órgão
inominado para a resolução de conflitos.
Posteriormente, com a aprovação e entrada em vigor da
Constituição de 1933, dá-se inicio a um novo período de evolução da organização
da justiça administrativa em Portugal, através do Decreto n.º 23185, de 30 de
Outubro de 1933. As três auditorias administrativas mantêm-se. Porém, o Supremo
Conselho de Administração Pública é substituído pelo Supremo Tribunal
Administrativo. Este diploma mantém a existência de um tribunal do tipo
arbitral, o Tribunal dos Conflitos, porém este passa a ser integrado por seis
juízes conselheiros – três do Supremo Tribunal de Justiça (sorteados para cada
processo) e três do Supremo Tribunal Administrativo – e presidido pelo
presidente deste último – artigos 1.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 23185, de 30 de
Outubro de 1933.
A composição do Tribunal dos Conflitos revela que, os
conflitos que estão em causa são os que ocorrem entre tribunais pertencentes,
por um lado, à jurisdição judicial, e por outro, à jurisdição administrativa ou
fiscal, relativamente a matérias passiveis de resolução por esses tribunais,
justificando-se, consequentemente, que este mesmo tribunal – órgão
paritariamente composto por Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Administrativo – a decidi-los.
Este Tribunal pronunciar-se-á sobre duas espécies de
conflitos: conflitos de jurisdição e conflitos de competência. Estaremos
perante um conflito de jurisdição, quando existirem duas decisões rejeitando em
cada um desses tribunais – Judicial e Administrativo e Fiscal – a competência
para conhecer determinada causa. Mas se o conflito existir entre decisões de
Tribunais Judiciais, ou entre decisões de Tribunais Administrativos e Fiscais,
o conflito é de competência.
O Tribunal dos Conflitos tem uma jurisprudência bastante
sólida. Nos casos de fronteira, este Tribunal apela sempre, numa lógica mais
funcional e objectiva, ao conceito de relação jurídica administrativa. A jurisdição administrativa e fiscal está
consolidada, definindo-se o seu âmbito com base num critério substantivo,
centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (Exposição
de motivos da Proposta de lei n.º 93/VIII, que aprova o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (revoga o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (in
Reforma do Contencioso Administrativo, vol. III, Ministério da Justiça).),
reservando-se-lhe a “apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial da função
administrativa”.
O conceito de relação jurídica administrativa apesar de fluído
é prestável. Podemos afirmar que, tal característica resulta do facto deste não
se resumir apenas às relações jurídicas administrativas puras, pois a
administração pública surge muitas vezes na relação jurídica como ente
particular. Tanto é, que se pode verificar que em termos processuais o CPTA e o
CPC tendem a aproximar-se em termos de regras, aproximação esta que, por si só, daria azo a um novo comentário.
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