terça-feira, 1 de novembro de 2016

Da jurisdição administrativa e sua complexidade à criação do Tribunal dos Conflitos

1. Ordem de jurisdição em Portugal

      Em Portugal, a ordem de jurisdição é dual, tendo de um lado a ordem dos tribunais judiciais, e do outro a ordem dos tribunais administrativos e fiscais. A ordem dos tribunais judiciais é residual, isto é, pertence-lhe julgar tudo o que não seja da competência dos tribunais administrativos e fiscais. Esta dualidade levanta um problema de fronteira, sendo necessário criar um critério que nos permita delimitar a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.

A Constituição da República Portuguesa distingue, quanto à competência de cada uma das categorias de tribunais, os tribunais judiciais, que “são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” [211º, nº 1], e os tribunais administrativos e fiscais, a quem compete “o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [212º, nº 3, da CRP].

O artigo 212.º, nº. 3, da Constituição da República Portuguesa, estabelece o critério definido a título constitucional. Este critério assenta numa lógica de dependência do direito processual em relação ao direito substantivo, sendo que na base do litigio temos necessariamente uma relação jurídica administrativa.

2. Relação jurídica administrativa

Levanta-se agora outra questão: saber o que é uma relação jurídica administrativa. Este conceito, é em ultimo termo uma cláusula geral em sentido técnico. Por definição, as cláusulas gerais são conceitos que não têm fronteiras e vão sendo concretizados no tempo e no espaço de forma progressiva. Desta forma, o conceito de relação jurídica administrativa tem sofrido alterações ao longo do tempo. 

Este conceito, pode ser tomado nos seguintes sentidos:

i) sentido subjectivo:
ii) sentido subjectivo;
iii) sentido funcional;

A relação jurídica administrativa é entendida como uma relação “regulada por normas de direito administrativo, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza privada” [ver Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 15; Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, D. Quixote, 2009, Tomo III, páginas 274 e seguintes; José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, Almedina, 8ª edição, páginas 57 e 58].

Não é possível definir uma relação jurídica administrativa em termos subjectivos, fazendo unicamente apelo à forma das pessoas colectivas que se encontram na base do litígio. Conhecemos inúmeros casos em que estamos perante a função administrativa, mas não de pessoas colectivas públicas, e sim privadas. O melhor exemplo para ilustrar esta situação será o caso dos concessionários, onde temos pessoas privadas ligadas à cessação, que exercem indiscutivelmente uma função administrativa. Sendo que as relações que se estabelecerem entre o concessionário e a actividade de outros particulares são, inobstante a termos em cada um dos polos duas pessoas privadas, relações jurídicas administrativas. Desta forma, pode-se concluir que a lei nos termos em que está organizada, na jurisdição administrativa, desmente que o critério possa ser subjectivo.

Neste sentido temos o Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 031/15: “Ainda que as partes não tivessem, expressamente, atribuído ao contrato natureza administrativa, como aconteceu, a mesma adviria, igualmente, do facto de o contrato ter sido celebrado, no exercício de funções, materialmente, administrativas, por uma sociedade anónima de capitais, maioritariamente, públicos, integrada no sector empresarial regional, concessionária de um serviço público, com utilidade pública, com vista à realização de um interesse público, sendo as empresas públicas regionais equiparadas a entidades administrativas.”

E ainda, o Acórdão 025/15 do mesmo tribunal: “Este Tribunal de Conflitos tem por várias vezes vindo a ser chamado a decidir situações similares a esta, em que estava em causa saber qual a jurisdição competente para julgar questões de responsabilidade extracontratual relacionadas com acidentes de viação ocorridos em vias concessionadas, por violação dos deveres decorrentes do contrato de concessão. A solução a dar-lhe não tem seguido uma via única, sendo certo que é possível descortinar uma posição maioritária que se tem vindo a afirmar, no sentido de que a jurisdição administrativa é a competente para dirimir este tipo de litígios (ver, entre outros, os acórdãos deste Tribunal de 30.05.13, Proc. n.º 017/13; de 27.02.14, Proc. n.º 048/13; 12.03.15, Proc. n.º 049/14; de 25.03.15, Proc. n.º 053/14; de 22.04.15, Proc. n.º 011/15; de 07.05.15, Proc. n.º 010/15; de 09.07.15, Proc. n.º 021/15; 12.11.15, Proc. n.º 24/15). Em sentido diverso, atribuindo a competência para dirimir o tipo de litígios em apreço aos tribunais comuns, existe, pelo menos, o Acórdão deste Tribunal de Conflitos de 18.12.13, Proc. n.º 028/13, que estimou, num caso similar, que a situação “não se enquadra juridicamente na previsão do art. 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007”. Entendemos ser de subscrever a orientação maioritária, considerando materialmente competente a jurisdição administrativa, alinhando, portanto, pela argumentação que tem vindo a ser desenvolvida nos arestos primeiramente citados.”

Não sendo o critério subjectivo suficiente, na nossa ordem jurídica, para delimitar o conceito de relação jurídica administrativa, costumam apontar-se outros critérios para tal efeito: o critério objectivo, que aponta como relação jurídica administrativa aquela em que estiver envolvida o Direito Administrativo, ou um conceito mais próximo deste, aquela em que estiver em causa o exercício da função administrativa. Estas duas aproximações levantam outra questão, saber o que é o Direito Administrativo e a função administrativa. Por fim, temos o critério funcional que faz corresponder o carácter “administrativo” da relação ao âmbito substancial da própria função administrativa.

2.1 Importância do conceito de relação jurídica administrativa

O conceito de relação jurídica administrativa é bastante importante, para além de ajudar a definir a fronteira da jurisdição administrativa e judiciária, na linha de pensamento do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva este é um conceito que apresenta alguma ideologia. Segundo o mesmo, se dissermos que entre a administração pública, ou entre quem exerce a função administrativa, e os particulares, se estabelecem relações jurídicas, estamos a ir contra a lógica mais tradicional da própria administração. Ou seja, a administração não é só uma história de poder e autoridade, nem exerce unilateral e soberanamente o seu poder sobre os particulares que se submetem ao exercício do mesmo. O que se verifica, são relações jurídicas de parte a parte, a existência de direitos e deveres, e sobretudo na perspectiva dos particulares há direitos que não se podem menorizar contra a administração. Existe de facto relações entre a administração pública e os particulares.

Apesar deste conceito ser bastante importante na delimitação de litígios administrativos, era bastante inseguro recorrermos apenas a este. Existe uma discussão doutrinária em torno deste conceito, pois importa saber se, o mesmo, funciona em termos absolutos ou relativos.
Debruçamo-nos sobre esta discussão no momento em que, a Constituição define o âmbito de acção dos tribunais administrativos e fiscais, referindo que o mesmo integra os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Mas abrangerá, este âmbito, todos e apenas os litígios que emirjam de relações administrativas, ou permitirá este conceito a existência de litígios que não emirjam de relações jurídicas administrativas e pertençam aos tribunais administrativos? Ou ainda, que existam litígios que emirjam de relações jurídicas administrativas e não estejam nos tribunais jurídicos administrativos.

Um exemplo capaz de ilustrar esta realidade são as expropriações, estas são dirimidas nos tribunais judiciais. Temos por isso que "no tocante à extinção do direito de propriedade sobre os bens que lhe pertenciam e ao nascimento do direito de propriedade da entidade expropriante sobre eles, está o expropriado sujeito aos poderes de autoridade da Administração, que actua precisamente no exercício desses poderes, pelo que nos encontramos no domínio das relações jurídicas administrativas; mas já não o está quanto ao aspecto da determinação concreta do montante indemnizatório, em que a Administração actua despida da sua veste autoritária para se colocar em situação de igualdade perante o particular no litígio judicial destinado à fixação daquele montante, pelo que, nessa fase, já não nos encontramos no domínio dessas relações" (Ac. STJ de 30/04/2002, no Proc. 4196/01 da 6ª secção (relator Silva Salazar).

O entendimento do Tribunal Constitucional é de que esta definição não é estanque, desta forma, existem situações que muito duvidosamente são relações jurídicas administrativas, mas que ainda assim se encontram dentro da área de jurisdição dos Tribunais Administrativos. Por outro lado, há indiscutivelmente situações que são relações jurídicas administrativas e que não se encontram no âmbito da jurisdição administrativa. Isto prova a tese do conceito relativo de relação jurídica administrativa. 

Desta forma, o ordenamento criou um elenco de tipologias de classes de casos que pretendem concretizar o conceito de relação jurídica administrativa. Esta solução foi conseguida através do artigo 4º. do ETAF, este artigo elenca índices que nos permitem falar, ou não, de relações jurídica administrativas.

Em 2015, procedeu-se à alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o que resultou na eliminação no artigo 1.º da referência às “relações jurídicas administrativas e fiscais”, substituindo a mesma pela remissão para os litígios que se encontram previstos no artigo 4.º do ETAF. Podemos encontrar agora, o conceito de relação jurídica administrativa, na alínea o), do nº1, do artigo 4.º do ETAF. Desta forma, o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF perde o seu carácter de cláusula geral e funciona agora de forma residual.

Procura-se tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais administrativos, por referência ao critério constitucional da “relação jurídica administrativa”. A alteração é explicada com a intenção de clarificação dos “termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal” e a intenção de “fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos.” (Cfr. ponto 8 do preâmbulo do projecto de decreto-lei autorizado).

3. O Tribunal dos Conflitos

Apesar da jurisdição em Portugal ser dual, existem situações duvidosas quanto à jurisdição competente para julgar determinado litígio. Estamos perante um conflito negativo de jurisdição, quando tanto a ordem judicial, como a ordem administrativa, se arrogam incompetentes para julgar determinado conflito. Contrariamente, teremos conflitos de jurisdição positiva quando as duas jurisdições se arrogam competentes para julgar o litígio.
Nestes casos, é competente para resolver os conflitos entre autoridades administrativas e judiciais o Tribunal dos Conflitos. Este tribunal tem a particularidade de não existir, ou seja, não existe enquanto instituição, trata-se assim de uma formação especial, criada ad hoc, funcionando como uma espécie de tribunal arbitral.

Nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “os conflitos de jurisdição são resolvidos, conforme os casos, pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal dos Conflitos”, sendo que o n.º 3 do mesmo preceito legal esclarece que “o processo a seguir no julgamento dos conflitos de jurisdição cuja resolução caiba ao Tribunal dos Conflitos é o estabelecido na respectiva legislação”, competindo ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao Tribunal dos Conflitos – artigo 62.º, n.º 3, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.

O Tribunal dos Conflitos foi criado pelo Decreto n.º 19423, de 16 de Janeiro de 1931, competindo-lhe, então, de acordo com o preceituado no artigo 59.º, conhecer dos conflitos positivos ou negativos de jurisdição e competência entre as autoridades administrativas e judiciais. Abrindo-se assim um novo e curto período da organização da justiça administrativa. A justiça administrativa fica entregue unicamente a três auditorias administrativas e ao Supremo Conselho de Administração Pública.
Prevê-se ainda a criação deste órgão inominado para a resolução de conflitos.

Posteriormente, com a aprovação e entrada em vigor da Constituição de 1933, dá-se inicio a um novo período de evolução da organização da justiça administrativa em Portugal, através do Decreto n.º 23185, de 30 de Outubro de 1933. As três auditorias administrativas mantêm-se. Porém, o Supremo Conselho de Administração Pública é substituído pelo Supremo Tribunal Administrativo. Este diploma mantém a existência de um tribunal do tipo arbitral, o Tribunal dos Conflitos, porém este passa a ser integrado por seis juízes conselheiros – três do Supremo Tribunal de Justiça (sorteados para cada processo) e três do Supremo Tribunal Administrativo – e presidido pelo presidente deste último – artigos 1.º e 17.º do Decreto-Lei n.º 23185, de 30 de Outubro de 1933.

A composição do Tribunal dos Conflitos revela que, os conflitos que estão em causa são os que ocorrem entre tribunais pertencentes, por um lado, à jurisdição judicial, e por outro, à jurisdição administrativa ou fiscal, relativamente a matérias passiveis de resolução por esses tribunais, justificando-se, consequentemente, que este mesmo tribunal – órgão paritariamente composto por Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo – a decidi-los.
Este Tribunal pronunciar-se-á sobre duas espécies de conflitos: conflitos de jurisdição e conflitos de competência. Estaremos perante um conflito de jurisdição, quando existirem duas decisões rejeitando em cada um desses tribunais – Judicial e Administrativo e Fiscal – a competência para conhecer determinada causa. Mas se o conflito existir entre decisões de Tribunais Judiciais, ou entre decisões de Tribunais Administrativos e Fiscais, o conflito é de competência.

O Tribunal dos Conflitos tem uma jurisprudência bastante sólida. Nos casos de fronteira, este Tribunal apela sempre, numa lógica mais funcional e objectiva, ao conceito de relação jurídica administrativa. A jurisdição administrativa e fiscal está consolidada, definindo-se o seu âmbito com base num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (Exposição de motivos da Proposta de lei n.º 93/VIII, que aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (revoga o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (in Reforma do Contencioso Administrativo, vol. III, Ministério da Justiça).), reservando-se-lhe a “apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial da função administrativa”.


O conceito de relação jurídica administrativa apesar de fluído é prestável. Podemos afirmar que, tal característica resulta do facto deste não se resumir apenas às relações jurídicas administrativas puras, pois a administração pública surge muitas vezes na relação jurídica como ente particular. Tanto é, que se pode verificar que em termos processuais o CPTA e o CPC tendem a aproximar-se em termos de regras, aproximação esta que, por si só, daria azo a um novo comentário.

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