terça-feira, 1 de novembro de 2016

Pressupostos processuais: a distinção entre legitimidade, interesse em agir e aceitação do ato

No âmbito dos pressupostos processuais relativos às partes, poder-se-á afirmar que é relevante fazer uma distinção entre a legitimidade, interesse processual ou interesse em agir, bem como aceitação do ato e perceber se esta mesma aceitação se insere no pressuposto processual do interesse em agir ou se corresponde a um pressuposto processual autónomo.
É inegável que a legitimidade processual corresponde a um pressuposto processual autónomo, que, nas palavras do professor Vasco Pereira da Silva,” do ponto de vista da teoria do processo, constitui o elo de ligação entre a relação jurídica substancial e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais”[1], pelo que não há discussão e discordância doutrinal ou jurisprudencial nesta matéria. Dentro da legitimidade das partes deve-se começar por separar-se a legitimidade ativa da legitimidade passiva, sendo que a primeira diz respeito à titularidade do direito de ação e a segunda remete para a entidade contra quem se formula o pedido ou que seja prejudicada pela sua procedência.
Não obstante, a doutrina processualista tem-se dividido ao longo da história no que diz respeito ao alcance da legitimidade processual, pelo que alguns autores defendiam que a mesma se traduzia na titularidade da relação jurídica, tal como foi identificada na petição, e outros, que a titularidade deve ser a da verdadeira relação jurídica, eventualmente aquela que fosse estabelecida pelo tribunal. Em dezembro de 1995, aquando da revisão do CPC, o legislador optou por consagrar a primeira tese, à luz do artigo 26º, nº3 do CPC. O artigo 9º do CPTA optou por adotar essa mesma posição, ou seja, tanto no processo civil como no processo administrativo consagrou-se o alcance da legitimidade processual como a titularidade da relação jurídica, tal como foi invocada na petição pelo autor.
Da legitimidade processual distingue-se o interesse processual ou interesse em agir como pressuposto processual autónomo, sendo que o mesmo remete para a necessidade de tutela jurisdicional, isto é, nas palavras do professor Vieira de Andrade, exige-se a “verificação objetiva de um interesse real e atual”[2], remetendo-se assim para a utilidade na procedência do pedido à luz do principio da economicidade processual.
Ora, poder-se-á afirmar que este pressuposto processual complementa a legitimidade ativa, no âmbito da ação administrativa, pois além da titularidade da posição jurídica substantiva, exige-se a idoneidade da tutela judicial para legitimar o recurso aos tribunais, ou seja, há ausência deste pressuposto na circunstancia de falta de uma necessidade efetiva de tutela judiciaria consequente da ausência de factos objetivos que tornem necessário o recurso a esta via.
O artigo 39º consolidou definitivamente a diferença entre legitimidade e interesse em agir, consagrando expressamente o interesse processual como pressuposto autónomo. É no nº1 do mesmo artigo que este principio assume maior relevância, desde já porque o seu conteúdo remete para as ações meramente declarativas ou de simples apreciação fundadas em situações de incerteza objetiva, ameaças de lesão, legitimadas pelo receio da verificação no futuro de condutas lesivas adotadas pela administração que surgem como possíveis consequências de avaliações incorretas das situações jurídicas existentes. Por sua vez, o nº2 remete para ações preventivas dirigidas à condenação à omissão de perturbações ilegais ainda não ocorridas, dirigidas à imposição de deveres de abstenção e, portanto, à obtenção de uma tutela inibitória, em situações de ameaça de agressões ilegítimas. No entender do professor Mário Aroso de Almeida, apesar de o nº2 só referir os casos particulares das ações de condenação à não emissão de atos administrativos, deve-se entender que as previsões do nº1 também abrangem genericamente as situações de condenação à abstenção de todo o tipo de condutas ilegais quando se referem ao “fundado receio de que a administração possa vir a dotar uma conduta lesiva”[3].
Assim, poder-se-á concluir que a diferença entre estes dois pressupostos processuais reside no facto da legitimidade aferir-se em relação à parte que é titular da relação material controvertida, sendo que no interesse processual não se discute a titularidade do direito, mas sim a necessidade efetiva de tutela judiciária, ou seja, de factos objetivos que tornem necessário o recurso à via judicial.  Desta forma, o titular do direito, tem que preencher o pressuposto da legitimidade, bem como demonstrar a idoneidade do recurso à via judicial.  O interesse em agir surge assim como pressuposto processual que visa impedir a instauração de ações inúteis à luz da economia processual.
Por último, mas não de menor relevância, ficou a análise da “aceitação do ato” como pressuposto processual no contencioso administrativo. Aqui se levanta a questão se efetivamente se trata de um pressuposto processual autónomo ou se estamos perante o âmbito do interesse processual.
Ora, à luz do artigo 56º do CPTA, a impugnação de atos administrativos só é admitida, nos casos em que quem o quer impugnar não o tenha aceitado expressa ou tacitamente, depois de praticado.
Na opinião do professor Mário Aroso de Almeida, trata-se de um pressuposto processual especifico, de conteúdo negativo e especial que surge em matéria de impugnações de atos administrativos, sendo que para as mesmas ser admitidas é necessário que o autor não tenha praticado, de modo espontâneo e sem reserva, um ato incompatível com a vontade de impugnar. Daqui resulta que se o particular interessado aceitar um ato administrativo, exclui-se a possibilidade de ele o impugnar judicialmente com fundamento na sua anulabilidade, pelo que só releva a aceitação do ato anulável e não de ato nulo. O professor Aroso de Almeida também faz a distinção entre a aceitação do ato e a renuncia ao direito de impugnação, afirmando que aquele se traduz num mero ato jurídico e não numa declaração negocial[4].
Ora, perante a aceitação voluntária do resultado, há assim uma atitude do particular de conformação com os efeitos desfavoráveis do ato. Nesta medida, a aceitação do ato deve ser vista como um pressuposto processual autónomo que se distingue da ilegitimidade e da falta de interesse em agir, com vista a evitar situações de “venire contra factum proprium” e, concomitantemente, abuso do direito de ação.
Por outro lado, o Professor Vasco Pereira da Silva, associa o interesse processual à aceitação do ato administrativo, previsto no artigo 56º do CPTA. A aceitação do ato administrativo surge regulada ao lado das questões de legitimidade (artigo 55º do CPTA), sendo que tal se explica tendo em conta os “traumas de infância difícil” do Contencioso Administrativo, pois não se admitia a titularidade de direitos subjetivos perante a Administração, pelo que a doutrina reconduzia a questão da aceitação do ato ao mundo da legitimidade, por não se considerar que o interesse processual formasse um pressuposto processual autónomo.
Na perspetiva dos professores Vasco Pereira da Silva[5] e Vieira de Andrade, há efetivamente que fazer uma separação entre a aceitação do ato e o pressuposto da legitimidade. Porém, na opinião do primeiro, não há vantagens em autonomizar a aceitação do ato como pressuposto autónomo, parecendo-lhe mais adequado reconduzir a questão para o interesse em agir em termos semelhantes ao processo civil.
 No entanto, a aceitação do ato, não impede, como refere o professor Vasco Pereira da Silva, que, estando a correr os prazos de impugnação, o particular venha a revogar a sua decisão, pelo que a aceitação e ulterior revogação deve ser vista à luz do interesse processual. Assim, a aceitação e posterior revogação da mesma não pode bloquear a possibilidade de agir em juízo, sob pena de violação do artigo 268º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Em jeito de conclusão, e tendo em conta os artigos 39º, 55º e 56º do CPTA, poder-se-á afirmar que, hodiernamente, a distinção entre legitimidade processual e interesse em agir é claramente assumida pelo contencioso administrativo, bem como a diferenciação entre a legitimidade e a aceitação do ato. Contudo, a autonomização da aceitação do ato como pressuposto processual não é unânime, sendo que me parece mais plausível a tese do professor Vieira de Andrade que afirma a aceitação do ato como pressuposto processual autónomo negativo e especial.

Bruno Martins Pires
4º ano, Subturma 9
Aluno nº24442





[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009, Lisboa.
[2] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (lições), 9ª Edição, Almedina, 2007.
[3] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª edição, 2005.
[4]   MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, manual de processo administrativo, 2º edição, Almedina, 2016
[5]  VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009, Lisboa.

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