O
presente trabalho trata um Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04/02/2016,
processo: 035/15 relativo a um conflito negativo de jurisdição sobre um
contrato de empreitada.
Passemos então à análise do acórdão.
A. autora, sociedade comercial com
sede em Arouca, instaurou acção administrativa comum sob a forma de processo
ordinário, contra B. ré, e também ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL, IPSS[1]
com o fim de obter condenação da ré ao pagamento de 34.743,47 euros, acrescida
de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até ao respectivo pagamento. A autora alega ter celebrado
contrato de empreitada com a ré e ter cumprido todas as suas cláusulas e esta
não lhe pagou a totalidade das facturas relativas à realização do trabalho. Em
resposta a ré alega não ter pago porque a autora ainda não procedeu ao reparo
dos defeitos que lhe foram comunicados.
Como factos provados deu-se (entre
outros) que a ré é uma instituição particular de solidariedade social; e que o
contrato de empreitada foi precedido de um concurso público[2]
publicado na terceira série do Diário da República de 31/10/1997.
A matéria foi submetida ao Tribunal
Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF) que se julgou incompetente para decidir
à acção declarando que a competência cabia à jurisdição comum. Fundamentou a
sua decisão no facto da relação não ser
administrativa ou fiscal tendo em conta que o contrato de empreitada celebrado
não tem cláusulas específicas dos contratos de natureza
jurídico-administrativa, e tendo também em conta a natureza privada do
sujeitos, conclui o TAF assim que a situação
concreta não está submetida a qualquer alínea do artigo 4º/1 do ETAF.
O Tribunal Judicial de Santa Maria
da Feira aceitou ter competência para conhecer do mérito, contudo, a ré recorre
para o Tribunal da Relação do Porto alegando que o contrato de empreitada tinha
sido precedido de um procedimento contratual de natureza pública
portanto era da competência do TAF julgar o litígio.
De seguida a Relação do Porto dá provimento ao recurso
entendendo que se trata de procedimento pré-contratual regulado por norma de
direito público regulado pelo artigo 4º/1 e) do ETAF, devolvendo a competência
aos tribunais administrativos. Ou seja para o Tribunal da Relação do Porto a
jurisdição administrativa basta-se com um contrato precedido de procedimento pré-contratual.
Os autos sobem então ao Tribunal de
Conflitos que recolhe parecer do Ministério Público (MP). O Procurador-geral Adjunto refere que a jurisdição está do lado dos tribunais judiciais devido ao
facto da jurisdição administrativa não depender apenas da utilização de um
procedimento pré-contratual de natureza pública mas torna-se também necessário
que haja uma lei que submeta, ou potencialmente submeta, o contrato a esse procedimento regulado por normas de
direito público. O MP acrescenta ainda que se analisarmos a norma que prevê
este concurso público, artigo 48º do Decreto-lei nº405/93, não se encontra uma
permissão especifica.
Feita a analise das diferentes
posições dos Tribunais e do Ministério publico, passemos à analise do Tribunal
de conflitos.
Em primeiro lugar, devemos referir
que a jurisdição e competência são realidades diferentes e que, no caso
concreto, estamos perante um problema de jurisdição na medida em que se trata
da designação do poder atribuído aos tribunais de forma genérica. Já a
competência é vista como o poder dos tribunais da mesma espécie, isto é, como
refere Antunes Varela[3]
é o "poder resultante do fracionamento do (mesmo) poder jurisdicional".
Posto isto, o artigo 4º do ETAF dá-nos a delimitação do âmbito de jurisdição
administrativa e fiscal, sendo que é do âmbito desta todos os litígios sobre
matéria jurídico-administrativa e fiscal desde que não apresentem norma
especial que expressamente atribua a jurisdição aos tribunais comuns. Também
aqueles litígios que versem sobre questões jurídico-administrativas e fiscais
mas que lhe tenha sido atribuída expressamente jurisdição administrativa estão
sujeitos à jurisdição administrativa[4].
Feitas estas considerações, os
tribunais judiciais "exercem jurisdição em todas as áreas não
atribuídas a outras ordens judiciais", artigo 211º/1 CRP, definindo-se
assim a sua jurisdição por exclusão. Já os tribunais administrativos e fiscais
têm o seu âmbito de jurisdição ligado aos "litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas", artigo 212º/3 CRP. Cabe-nos neste
ponto proceder à análise do contrato para determinar se a relação jurídica
constituída com a celebração do mesmo é administrativa ou não, maxime se
estamos perante um contrato administrativo.
Podemos começar por excluir o
critério do contrato administrativo para qualificar a acção como contencioso
dos contratos e assim cair da jurisdição administrativa, na medida em que este
contrato de empreitada em particular não tem nenhuma característica de
administratividade prevista no artigo 1º/6 do Código dos Contratos Públicos.
Sem querer aprofundar o tema da contratação pública, como afirma MÁRIO AROSO
DE ALEMEIDA[5],
podemos referir que existem três grandes grupos de contratos administrativos:
1. Os
contratos administrativo por natureza que, em razão do seu objecto ou do seu
fim têm natureza publica. Elementos integrantes deste grupo são as alíneas b)
c) e d) do artigo 1º nº6 CCP.
2. Os
contratos administrativos por determinação da lei (típicos), sendo aqueles em
que a lei impõe a qualificação de contratos administrativos, artigo 1º/6 a) do
CCP.
3. Os
contratos administrativos que, por vontade das partes, assim o são. A lei
permite que, sendo um dos contraentes uma entidade pública, e estando perante
um contrato de direito privado, ele passe a ser contrato administrativo porque
as partes assim o quiseram. Previstos no artigo 1º/6 a) 3º/1 b) e 8º CCP.
Ora, feita esta explicitação, não
nos parece que o contrato de empreitada possa socorrer-se de qualquer um destes
grupos, portanto não cai na jurisdição administrativa pelo critério do contrato
administrativo.
Agora, visto que o âmbito do 4º/1 e)
do ETAF é amplo, ou seja, para além de submeter à jurisdição administrativa os
contratos administrativos, ainda apresenta outro critério que é o de saber se o
contrato está submetido ou potencialmente submetido a regras da contratação
pública. Concretizando, esta alínea
compreende também contratos celebrados por entidades privadas quando a lei as
submeta a regras de direito publico em matéria de procedimentos
pré-contratuais. simplificando, quando sejam entidades adjudicantes. Se assim for, jurisdição administrativa.
Feita esta análise, verificamos que
a razão estava do lado do TAF, mas a justificação não foi a mais acertada pois
a sua argumentação foi baseada no contrato ser de direito civil e as partes
serem de direito privado, o que, no seu
entender, afastaria a jurisdição administrativa. Em vez disto deveria ter sido
o facto de ambos os critérios acima referidos não terem sido preenchidos, tendo
em conta que não existia lei específica que obrigasse a um procedimento
pré-contratual regulado por normas de
direito público.
Na verdade, e coincidindo com o
tribunal de conflitos, a letra da alínea e) do 4º/1 do ETAF não distingue entre
contratos públicos e privados, nem entre contraentes públicos ou privados. E
inclui ainda questões relativas a formação do contrato à sua interpretação e
execução abrangendo todo o tipo de
contratos previstos pela alínea e não só os relacionados com a
adjudicação[6].
Quer isto significar que não é a natureza do contrato nem a qualidade dos
sujeitos, mas sim o facto do contrato ter sido precedido de um procedimento
regido por normas de direito público por imposição legal.
Feito este caminho, apenas nos falta
determinar se, então, aquele contrato de empreitada foi ou não precedido de
procedimento pré-contratual por imposição legal ou por vontade das partes.
Analisando o já citado artigo 48º/2 do DL 405/93 de 10/02 "o processo de
concurso público compreende as fases de abertura do concurso apresentação da
documentação, habilitação dos concorrentes, verificação dos requisitos das
propostas e adjudicação" não retiramos qualquer imposição legal , mas indo
mais além e recorrendo ao Estatuto das IPSS'S DL 119/83 de 25/02 no seu artigo
23º/1 também não podemos retirar nenhuma obrigatoriedade, pois "a
empreitada de obras de construção ou de grande reparação (…) deverá ser feita
por concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente"
Posto isto podemos concluir que a
precedência de procedimento pré-contratual foi realizada por vontade das partes
e, daqui decorre que, a competência de jurisdição cabe aos tribunais comuns e
não à jurisdição administrativa.
Bibliografia:
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A
Justiça Administrativa (Lições), 15ª Edição, Coimbra: Almedina, 2016;
VARELA, Antunes; BEZERRA, J. Miguel;
SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, Coimbra
Editora 1999;
AROSO DE ALEMEIDA, Mário, Manual
de Processo Administrativo 2ª Edição, Coimbra: Almedina, 2016;
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina, 2009.
[1]Estatuto
das IPSS'S Decreto-lei 119/83
[2]Lançado ao abrigo
do artigo 48º do DL 405/93 de 10/12.
[3]Cfr.
Antunes Varela; Manual de Processo Civil, 2ª Edição, 1999, p. 196.
[4]Cfr.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA; Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição,
2016, p. 154.
[5]Crf.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA; Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição,
2016, p. 163.
[6]Neste
sentido, crf. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23/05/2013, conflito nº 21/12
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