terça-feira, 1 de novembro de 2016

A Jurisdição Administrativa: em especial o artigo 4º/1 e) do ETAF


O presente trabalho trata um Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04/02/2016, processo: 035/15 relativo a um conflito negativo de jurisdição sobre um contrato de empreitada.

Passemos então à análise do acórdão.
A. autora, sociedade comercial com sede em Arouca, instaurou acção administrativa comum sob a forma de processo ordinário, contra B. ré, e também ASSOCIAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL, IPSS[1] com o fim de obter condenação da ré ao pagamento de 34.743,47 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal até ao respectivo pagamento. A autora alega ter celebrado contrato de empreitada com a ré e ter cumprido todas as suas cláusulas e esta não lhe pagou a totalidade das facturas relativas à realização do trabalho. Em resposta a ré alega não ter pago porque a autora ainda não procedeu ao reparo dos defeitos que lhe foram comunicados.
Como factos provados deu-se (entre outros) que a ré é uma instituição particular de solidariedade social; e que o contrato de empreitada foi precedido de um concurso público[2] publicado na terceira série do Diário da República de 31/10/1997.

A matéria foi submetida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (TAF) que se julgou incompetente para decidir à acção declarando que a competência cabia à jurisdição comum. Fundamentou a sua decisão  no facto da relação não ser administrativa ou fiscal tendo em conta que o contrato de empreitada celebrado não tem cláusulas específicas dos contratos de natureza jurídico-administrativa, e tendo também em conta a natureza privada do sujeitos, conclui o TAF assim que a situação  concreta não está submetida a qualquer alínea do artigo 4º/1 do ETAF. 
O Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira aceitou ter competência para conhecer do mérito, contudo, a ré recorre para o Tribunal da Relação do Porto alegando que o contrato de empreitada tinha sido precedido de um procedimento contratual de natureza pública portanto era da competência do TAF julgar o litígio. 

De seguida  a Relação do Porto dá provimento ao recurso entendendo que se trata de procedimento pré-contratual regulado por norma de direito público regulado pelo artigo 4º/1 e) do ETAF, devolvendo a competência aos tribunais administrativos. Ou seja para o Tribunal da Relação do Porto a jurisdição administrativa basta-se com um contrato  precedido de procedimento pré-contratual.

Os autos sobem então ao Tribunal de Conflitos que recolhe parecer do Ministério Público (MP). O Procurador-geral Adjunto refere que a jurisdição está do lado dos tribunais judiciais devido ao facto da jurisdição administrativa não depender apenas da utilização de um procedimento pré-contratual de natureza pública mas torna-se também necessário que haja uma lei que submeta, ou potencialmente submeta, o contrato  a esse procedimento regulado por normas de direito público. O MP acrescenta ainda que se analisarmos a norma que prevê este concurso público, artigo 48º do Decreto-lei nº405/93, não se encontra uma permissão especifica.

Feita a analise das diferentes posições dos Tribunais e do Ministério publico, passemos à analise do Tribunal de conflitos.
Em primeiro lugar, devemos referir que a jurisdição e competência são realidades diferentes e que, no caso concreto, estamos perante um problema de jurisdição na medida em que se trata da designação do poder atribuído aos tribunais de forma genérica. Já a competência é vista como o poder dos tribunais da mesma espécie, isto é, como refere Antunes Varela[3] é o "poder resultante do fracionamento do (mesmo) poder jurisdicional". Posto isto, o artigo 4º do ETAF dá-nos a delimitação do âmbito de jurisdição administrativa e fiscal, sendo que é do âmbito desta todos os litígios sobre matéria jurídico-administrativa e fiscal desde que não apresentem norma especial que expressamente atribua a jurisdição aos tribunais comuns. Também aqueles litígios que versem sobre questões jurídico-administrativas e fiscais mas que lhe tenha sido atribuída expressamente jurisdição administrativa estão sujeitos à jurisdição administrativa[4].
 
Feitas estas considerações, os tribunais judiciais "exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais", artigo 211º/1 CRP, definindo-se assim a sua jurisdição por exclusão. Já os tribunais administrativos e fiscais têm o seu âmbito de jurisdição ligado aos "litígios emergentes das relações jurídicas administrativas", artigo 212º/3 CRP. Cabe-nos neste ponto proceder à análise do contrato para determinar se a relação jurídica constituída com a celebração do mesmo é administrativa ou não, maxime se estamos perante um contrato administrativo.
Podemos começar por excluir o critério do contrato administrativo para qualificar a acção como contencioso dos contratos e assim cair da jurisdição administrativa, na medida em que este contrato de empreitada em particular não tem nenhuma característica de administratividade prevista no artigo 1º/6 do Código dos Contratos Públicos. Sem querer aprofundar o tema da contratação pública, como afirma MÁRIO AROSO DE ALEMEIDA[5], podemos referir que existem três grandes grupos de contratos administrativos:
1.      Os contratos administrativo por natureza que, em razão do seu objecto ou do seu fim têm natureza publica. Elementos integrantes deste grupo são as alíneas b) c) e d) do artigo 1º nº6 CCP.
2.      Os contratos administrativos por determinação da lei (típicos), sendo aqueles em que a lei impõe a qualificação de contratos administrativos, artigo 1º/6 a) do CCP.
3.      Os contratos administrativos que, por vontade das partes, assim o são. A lei permite que, sendo um dos contraentes uma entidade pública, e estando perante um contrato de direito privado, ele passe a ser contrato administrativo porque as partes assim o quiseram. Previstos no artigo 1º/6 a) 3º/1 b) e 8º CCP.
Ora, feita esta explicitação, não nos parece que o contrato de empreitada possa socorrer-se de qualquer um destes grupos, portanto não cai na jurisdição administrativa pelo critério do contrato administrativo.

Agora, visto que o âmbito do 4º/1 e) do ETAF é amplo, ou seja, para além de submeter à jurisdição administrativa os contratos administrativos, ainda apresenta outro critério que é o de saber se o contrato está submetido ou potencialmente submetido a regras da contratação pública.  Concretizando, esta alínea compreende também contratos celebrados por entidades privadas quando a lei as submeta a regras de direito publico em matéria de procedimentos pré-contratuais. simplificando, quando sejam entidades adjudicantes.  Se assim for, jurisdição administrativa.
Feita esta análise, verificamos que a razão estava do lado do TAF, mas a justificação não foi a mais acertada pois a sua argumentação foi baseada no contrato ser de direito civil e as partes serem de direito privado,  o que, no seu entender, afastaria a jurisdição administrativa. Em vez disto deveria ter sido o facto de ambos os critérios acima referidos não terem sido preenchidos, tendo em conta que não existia lei específica que obrigasse a um procedimento pré-contratual  regulado por normas de direito público.

Na verdade, e coincidindo com o tribunal de conflitos, a letra da alínea e) do 4º/1 do ETAF não distingue entre contratos públicos e privados, nem entre contraentes públicos ou privados. E inclui ainda questões relativas a formação do contrato à sua interpretação e execução abrangendo todo o tipo de  contratos previstos pela alínea e não só os relacionados com a adjudicação[6]. Quer isto significar que não é a natureza do contrato nem a qualidade dos sujeitos, mas sim o facto do contrato ter sido precedido de um procedimento regido por normas de direito público por imposição legal.

Feito este caminho, apenas nos falta determinar se, então, aquele contrato de empreitada foi ou não precedido de procedimento pré-contratual por imposição legal ou por vontade das partes. Analisando o já citado artigo 48º/2 do DL 405/93 de 10/02 "o processo de concurso público compreende as fases de abertura do concurso apresentação da documentação, habilitação dos concorrentes, verificação dos requisitos das propostas e adjudicação" não retiramos qualquer imposição legal , mas indo mais além e recorrendo ao Estatuto das IPSS'S DL 119/83 de 25/02 no seu artigo 23º/1 também não podemos retirar nenhuma obrigatoriedade, pois "a empreitada de obras de construção ou de grande reparação (…) deverá ser feita por concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente"
Posto isto podemos concluir que a precedência de procedimento pré-contratual foi realizada por vontade das partes e, daqui decorre que, a competência de jurisdição cabe aos tribunais comuns e não à jurisdição administrativa.

Bibliografia:
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, A Justiça Administrativa (Lições), 15ª Edição, Coimbra: Almedina, 2016;
VARELA, Antunes; BEZERRA, J. Miguel; SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, Coimbra Editora 1999;
AROSO DE ALEMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo 2ª Edição, Coimbra: Almedina, 2016;
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina, 2009.








[1]Estatuto das IPSS'S Decreto-lei 119/83
[2]Lançado ao abrigo do artigo 48º do DL 405/93 de 10/12.
[3]Cfr. Antunes Varela; Manual de Processo Civil, 2ª Edição, 1999, p. 196.
[4]Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA; Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, 2016, p. 154.
[5]Crf. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA; Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, 2016, p. 163.
[6]Neste sentido, crf. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23/05/2013, conflito nº 21/12

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.