terça-feira, 15 de novembro de 2016

A ação de condenação à pratica de ato devido.


Após as revisões constitucionais que obrigaram à “psicanálise” do Contencioso Administrativo, e que permitiram finalmente que os particulares vissem os seus direitos assegurados quando se relacionavam com a administração, surge no Contencioso Administrativo a figura das ações de condenação à prática de ato devido. Ora a premissa deste comentário é exatamente esta: as revisões constitucionais criaram, especialmente para o Contencioso Administrativo, uma mudança extremamente necessária, que permitiu o derrube de muitos dos traumas de infância que pesavam sobre o Direito Administrativo, e que culminaram com a criação, em 1997, da ação de condenação à prática de atos devidos por parte da Administração Publica.

 Enquanto modalidade de ação administrativa especial, a ação de condenação à prática de ato devido está prevista nos artigos 66º e seguintes do CPTA e vem contradizer toda a historia do Direito Administrativo no que se refere à linha ténue que separava o poder do tribunal de impedir a produção de efeitos de certos atos, do poder do tribunal de “forçar a mão” da Administração na pratica de atos distintos, sendo sempre invocado, apesar de desnecessariamente, como fundamento para impedir que o Tribunal condenasse a Administração o principio da separação de poderes[1]. Contudo, os Tribunais nunca invadiriam esfera jurídica alheia ao ordenar a Administração à pratica de determinado ato que tivesse como propósito a salvaguarda de um interesse real de um particular lesado, pelo que a interferência dos Tribunais nesta relação jurídica administrativa é, claramente, a solução mais adequada para reagir a uma lesão decorrente uma atuação, ou omissão, da Administração. Contudo, só com a interferência legislativa de 1997, por força da revisão constitucional, é que este novo meio processual se torna uma realidade, e nasce o artigo 66º do CPTA, e com ele duas novas modalidades de atuação nesta figura jurídica integrantes: a primeira consiste na condenação da Administração à emissão do ato jurídico devido; a segunda permite a condenação da Administração à prática de um ato mais favorável ao particular, com o intuito de substituir um ato desfavorável previamente praticado. 
 Ou seja, este novo meio processual tem um âmbito extremamente favorável para os particulares, por abranger tanto atos desfavoráveis já praticados como a omissão de atos a praticar pela Administração. O próprio artigo 66º, nº2 vem revelar uma enorme preocupação com a pretensão do interessado, sobrepondo-a ao ato administrativo em matéria de objeto processual, ou seja, a norma vem dizer-nos que o que visa proteger é, exatamente, o direito do particular a um determinado comportamento da Administração, pelo que o ato em si é esvaziado de toda a sua autonomia visto que a preocupação primária é a lesão a um direito subjetivo de um particular. Esta ideia de preocupação com o particular não se esgota no artigo 66º, estando ainda patente no artigo 71º, nº1, que revela a maior incidência na relação jurídica entre o particular e a Administração, determinando qual a tutela que o lesado merece e que atuação é devida por parte da Administração, independentemente da existência de um ato administrativo em concreto. Ou seja, o Tribunal passa a avaliar toda a relação controvertida para determinar os direitos e deveres das partes, tendo na sentença o poder de impor à parte que está “em falta” a atuação que a mesma deveria ter prosseguido. Identificamos, portanto, a existência de um leque de requisitos, sem os quais a ação não pode ser proposta, a saber: a existência de uma omissão de decisão, ou prática de ato administrativo de conteúdo negativo, como retiramos do artigo 67º; a legitimidade das partes, que vem regulada no 68º; e a oportunidade do pedido, prevista no artigo 66º. Ora estes três pressupostos, de forma muita sintética, vêm indicar que, para ser possível intentar uma ação de condenação a ato devido é necessário que a Administração ou nada tenha feito[2], ou tenha atuado em sentido desfavorável, que as partes com legitimidade para intentar a ação sejam as elencadas pelo artigo 68º, e que, consoante se esteja perante uma omissão ou ato de conteúdo negativo, que a mesma seja intentada dentro do prazo de 1 ano ou 3 meses, respetivamente.

 Podemos então referir esta nova forma de resolução de controvérsias levanta uma questão interessante: até que ponto pode o Tribunal Administrativo decidir no lugar da Administração, partindo desde já da premissa que o pode, efetivamente, fazer? Até agora ficou claramente estabelecido que os Tribunais podem emitir sentenças através das quais condenem a entidade competente à prática de determinado ato que a mesma omitiu ou se recusou ilegalmente[3]. Contudo, esta ideia base não reflete qual o papel que, em concreto, estas sentenças têm no que importa à discricionariedade das decisões administrativas, que só às entidades administrativas competentes têm respeito. Ou seja, poderá o Tribunal vincular a Administração à prática de um ato em concreto, ou resumir-se-ão as suas decisões à criação de balizas dentro das quais a entidade competente terá que se pronunciar? O artigo 3º, nº1 parece indicar que as decisões dos Tribunais Administrativos só podem incidir sobre a legalidade da atuação, não podendo fazer uma apreciação do mérito da mesma. E mais, o artigo 71º, nº2 do CPTA vem esclarecer que o Tribunal, caso não determine uma solução única aos olhos da lei, não pode determinar o conteúdo do ato, podendo apenas “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.” Contudo, o nº1 deste mesmo artigo vem afirmar que o Tribunal deve apreciar a questão até ao fim, ou seja, deve pronunciar-se sobre a pretensão material do interessado e impor a pratica do ato devido em concreto, desde que não interfiram com a margem de discricionariedade que é própria da Administração Publica, ou seja, que não decidam à luz de juízos que só a Administração é capaz de fazer.

 Posto isto, existem duas diferentes modalidades de sentença: a primeira consiste na sentença que impõe à Administração a prática de um ato de conteúdo determinado, ou seja, impõe a prática de um ato em concreto, por exemplo, impõe à Administração a atribuição de uma licença a um particular;  a segunda consiste na imposição à Administração que pratique um ato de conteúdo indeterminado, na qual o tribunal baliza as vinculações legais que a Administração tem que cumprir, mas deixa na tal esfera de discricionariedade a decisão em concreto, ou o ato em concreto, sentenças essas apelidadas pela doutrina de sentenças indiciativas, com previsão no artigo 71º, nº2. Da interpretação deste artigo retiramos também, “a contrario”, que sempre que a solução for, aos olhos da lei, apenas uma, que o Tribunal pode determinar o conteúdo do ato, interpretação esta que fundamenta a primeira modalidade de sentença referida neste paragrafo. Portanto, o que o artigo 71º vem fazer, de forma extremamente correta, é determinar até onde pode o Tribunal ir na sua condenação. Contudo, e o ponto que me parece mais curioso no estudo dos efeitos das sentenças neste tipo de ação, é exatamente aquele que nos é avançado pelo artigo 3º, nº4 do CPTA, que passo a citar:


"Artigo 3º
Poderes dos tribunais administrativos
(…)
4- Os tribunais administrativos asseguram ainda a execução das suas sentenças, designadamente daquelas que proferem contra a administração, seja através da emissão de sentença que produza os efeitos do ato administrativo devido, quando a pratica e o conteúdo deste ato sejam estritamente vinculados, seja providenciando a concretização material do que foi determinado na sentença."


 Ora cabe em primeiro lugar fazer uma menção ao artigo 268º, nº4 da CRP, que nos vem claramente dizer que os administrados têm direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que passa pela determinação à pratica de atos legalmente devidos. Posto isto, a minha interpretação referente a este artigo passa pela ideia de que, em casos que a Administração tivesse que atuar e não o fez, e a solução legal é uma só, nada obsta a que a sentença seja tida como titulo executivo e valha, no nosso ordenamento jurídico, como ato administrativo devido. O que significa que sempre que a sentença avalie a relação controvertida e chegue à conclusão que existe uma solução individual e concreta, esta pode fazer-se substituir à entidade administrativa e consequentemente, praticar o ato administrativo que deveria ter sido praticado dentro de determinado prazo e não foi. O que significa que sempre que determinemos que um ato, para ser praticado, recai ainda dentro da tal esfera de discricionariedade aqui exaustivamente mencionada, que a sentença não poderá produzir estes efeitos sob risco de violar o principio da separação de poderes.

 Deste modo se ultrapassaram muitos dos traumas de infância do contencioso administrativo, principalmente através da atribuição de um papel muito mais ativo dos tribunais administrativos, que deixam de ter apenas o poder de suspender a eficácia de atos ilegais, e passam a poder criar, eles próprios, e quando requeridos pelos administrados, sentenças com valor de ato administrativo para as situações em que um ato deveria ter sido criado e não foi, demonstrando uma maior preocupação por parte do contencioso administrativo pela salvaguarda dos interesses do particular, que vê agora nos tribunais administrativos um mecanismo de combate à inércia da Administração Publica.



Mariana Honório Nº24418



[1] A “santidade” deste principio é evidenciada pela referência utilizada pelo Professor Doutor Vasco Pereira da Silva no seu manual, no qual o apelida de “sacrossanto”. in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ob. Cit. pág. 378
[2] Neste caso de omissão, o que acontecia é que se ficcionava um indeferimento tácito do pedido do particular, a fim de permitir a sua impugnação. Com a criação das ações de condenação, esta ficção torna-se irrelevante pois permite ao particular exigir da Administração o ato que ela devia ter praticado atempadamente.
[3] Artigo 66º, nº1: “A ação administrativa pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado.”

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.