Após as revisões constitucionais
que obrigaram à “psicanálise” do Contencioso Administrativo, e que permitiram
finalmente que os particulares vissem os seus direitos assegurados quando se
relacionavam com a administração, surge no Contencioso Administrativo a figura
das ações de condenação à prática de ato devido. Ora a premissa deste comentário
é exatamente esta: as revisões constitucionais criaram, especialmente para o
Contencioso Administrativo, uma mudança extremamente necessária, que permitiu o
derrube de muitos dos traumas de infância que pesavam sobre o Direito
Administrativo, e que culminaram com a criação, em 1997, da ação de condenação
à prática de atos devidos por parte da Administração Publica.
Enquanto modalidade de ação administrativa
especial, a ação de condenação à prática de ato devido está prevista nos
artigos 66º e seguintes do CPTA e vem contradizer toda a historia do Direito
Administrativo no que se refere à linha ténue que separava o poder do tribunal
de impedir a produção de efeitos de certos atos, do poder do tribunal de “forçar
a mão” da Administração na pratica de atos distintos, sendo sempre invocado,
apesar de desnecessariamente, como fundamento para impedir que o Tribunal
condenasse a Administração o principio da separação de poderes[1].
Contudo, os Tribunais nunca invadiriam esfera jurídica alheia ao ordenar a Administração
à pratica de determinado ato que tivesse como propósito a salvaguarda de um
interesse real de um particular lesado, pelo que a interferência dos Tribunais
nesta relação jurídica administrativa é, claramente, a solução mais adequada
para reagir a uma lesão decorrente uma atuação, ou omissão, da Administração.
Contudo, só com a interferência legislativa de 1997, por força da revisão constitucional,
é que este novo meio processual se torna uma realidade, e nasce o artigo 66º do
CPTA, e com ele duas novas modalidades de atuação nesta figura jurídica integrantes:
a primeira consiste na condenação da Administração à emissão do ato jurídico devido;
a segunda permite a condenação da Administração à prática de um ato mais favorável
ao particular, com o intuito de substituir um ato desfavorável previamente praticado.
Ou seja, este novo meio processual tem um âmbito extremamente favorável para os
particulares, por abranger tanto atos desfavoráveis já praticados como a omissão
de atos a praticar pela Administração. O próprio artigo 66º, nº2 vem revelar
uma enorme preocupação com a pretensão do interessado, sobrepondo-a ao ato
administrativo em matéria de objeto processual, ou seja, a norma vem dizer-nos
que o que visa proteger é, exatamente, o direito do particular a um determinado
comportamento da Administração, pelo que o ato em si é esvaziado de toda a sua
autonomia visto que a preocupação primária é a lesão a um direito subjetivo de
um particular. Esta ideia de preocupação com o particular não se esgota no
artigo 66º, estando ainda patente no artigo 71º, nº1, que revela a maior incidência
na relação jurídica entre o particular e a Administração, determinando qual a
tutela que o lesado merece e que atuação é devida por parte da Administração,
independentemente da existência de um ato administrativo em concreto. Ou seja,
o Tribunal passa a avaliar toda a relação controvertida para determinar os
direitos e deveres das partes, tendo na sentença o poder de impor à parte que
está “em falta” a atuação que a mesma deveria ter prosseguido. Identificamos,
portanto, a existência de um leque de requisitos, sem os quais a ação não pode
ser proposta, a saber: a existência de uma omissão de decisão, ou prática de
ato administrativo de conteúdo negativo, como retiramos do artigo 67º; a
legitimidade das partes, que vem regulada no 68º; e a oportunidade do pedido,
prevista no artigo 66º. Ora estes três pressupostos, de forma muita sintética,
vêm indicar que, para ser possível intentar uma ação de condenação a ato devido
é necessário que a Administração ou nada tenha feito[2],
ou tenha atuado em sentido desfavorável, que as partes com legitimidade para
intentar a ação sejam as elencadas pelo artigo 68º, e que, consoante se esteja
perante uma omissão ou ato de conteúdo negativo, que a mesma seja intentada
dentro do prazo de 1 ano ou 3 meses, respetivamente.
Podemos então referir esta nova
forma de resolução de controvérsias levanta uma questão interessante: até que
ponto pode o Tribunal Administrativo decidir no lugar da Administração,
partindo desde já da premissa que o pode, efetivamente, fazer? Até agora ficou
claramente estabelecido que os Tribunais podem emitir sentenças através das
quais condenem a entidade competente à prática de determinado ato que a mesma
omitiu ou se recusou ilegalmente[3].
Contudo, esta ideia base não reflete qual o papel que, em concreto, estas
sentenças têm no que importa à discricionariedade das decisões administrativas,
que só às entidades administrativas competentes têm respeito. Ou seja, poderá o
Tribunal vincular a Administração à prática de um ato em concreto, ou
resumir-se-ão as suas decisões à criação de balizas dentro das quais a entidade
competente terá que se pronunciar? O artigo 3º, nº1 parece indicar que as decisões
dos Tribunais Administrativos só podem incidir sobre a legalidade da atuação,
não podendo fazer uma apreciação do mérito da mesma. E mais, o artigo 71º, nº2
do CPTA vem esclarecer que o Tribunal, caso não determine uma solução única aos
olhos da lei, não pode determinar o conteúdo do ato, podendo apenas “explicitar
as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.”
Contudo, o nº1 deste mesmo artigo vem afirmar que o Tribunal deve apreciar a questão
até ao fim, ou seja, deve pronunciar-se sobre a pretensão material do
interessado e impor a pratica do ato devido em concreto, desde que não
interfiram com a margem de discricionariedade que é própria da Administração
Publica, ou seja, que não decidam à luz de juízos que só a Administração é
capaz de fazer.
Posto isto, existem duas
diferentes modalidades de sentença: a primeira consiste na sentença que impõe à
Administração a prática de um ato de conteúdo determinado, ou seja, impõe a prática
de um ato em concreto, por exemplo, impõe à Administração a atribuição de uma licença
a um particular; a segunda consiste na imposição
à Administração que pratique um ato de conteúdo indeterminado, na qual o
tribunal baliza as vinculações legais que a Administração tem que cumprir, mas
deixa na tal esfera de discricionariedade a decisão em concreto, ou o ato em
concreto, sentenças essas apelidadas pela doutrina de sentenças indiciativas,
com previsão no artigo 71º, nº2. Da interpretação deste artigo retiramos também,
“a contrario”, que sempre que a solução for, aos olhos da lei, apenas uma, que
o Tribunal pode determinar o conteúdo do ato, interpretação esta que fundamenta
a primeira modalidade de sentença referida neste paragrafo. Portanto, o que o
artigo 71º vem fazer, de forma extremamente correta, é determinar até onde pode
o Tribunal ir na sua condenação. Contudo, e o ponto que me parece mais curioso
no estudo dos efeitos das sentenças neste tipo de ação, é exatamente aquele que
nos é avançado pelo artigo 3º, nº4 do CPTA, que passo a citar:
"Artigo 3º
Poderes dos tribunais
administrativos
(…)
4- Os tribunais administrativos
asseguram ainda a execução das suas sentenças, designadamente daquelas que
proferem contra a administração, seja através
da emissão de sentença que produza os efeitos do ato administrativo devido,
quando a pratica e o conteúdo deste ato sejam estritamente vinculados, seja
providenciando a concretização material do que foi determinado na sentença."
Ora cabe em primeiro lugar fazer
uma menção ao artigo 268º, nº4 da CRP, que nos vem claramente dizer que os
administrados têm direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que passa pela
determinação à pratica de atos legalmente devidos. Posto isto, a minha
interpretação referente a este artigo passa pela ideia de que, em casos que a
Administração tivesse que atuar e não o fez, e a solução legal é uma só, nada
obsta a que a sentença seja tida como titulo executivo e valha, no nosso ordenamento
jurídico, como ato administrativo devido. O que significa que sempre que a
sentença avalie a relação controvertida e chegue à conclusão que existe uma solução
individual e concreta, esta pode fazer-se substituir à entidade administrativa
e consequentemente, praticar o ato administrativo que deveria ter sido
praticado dentro de determinado prazo e não foi. O que significa que sempre que
determinemos que um ato, para ser praticado, recai ainda dentro da tal esfera
de discricionariedade aqui exaustivamente mencionada, que a sentença não poderá
produzir estes efeitos sob risco de violar o principio da separação de poderes.
Deste modo se ultrapassaram
muitos dos traumas de infância do contencioso administrativo, principalmente através
da atribuição de um papel muito mais ativo dos tribunais administrativos, que
deixam de ter apenas o poder de suspender a eficácia de atos ilegais, e passam
a poder criar, eles próprios, e quando requeridos pelos administrados,
sentenças com valor de ato administrativo para as situações em que um ato
deveria ter sido criado e não foi, demonstrando uma maior preocupação por parte
do contencioso administrativo pela salvaguarda dos interesses do particular,
que vê agora nos tribunais administrativos um mecanismo de combate à inércia da
Administração Publica.
Mariana Honório Nº24418
[1] A “santidade”
deste principio é evidenciada pela referência utilizada pelo Professor Doutor
Vasco Pereira da Silva no seu manual, no qual o apelida de “sacrossanto”. in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ob. Cit. pág. 378
[2] Neste
caso de omissão, o que acontecia é que se ficcionava um indeferimento tácito do
pedido do particular, a fim de permitir a sua impugnação. Com a criação das ações de condenação, esta ficção torna-se irrelevante pois permite ao
particular exigir da Administração o ato que ela devia ter praticado atempadamente.
[3] Artigo
66º, nº1: “A ação administrativa pode ser utilizada para obter a condenação da
entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato
administrativo ilegalmente omitido ou recusado.”
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