1. Contextualização
O Ministério Público com o conhecemos nos dias de hoje nasceu em 1975 com a actual Constituição da República: o texto constitucional conferiu-lhe autonomia e transformou-o numa organização sólida que se pauta por pela independência. Não nos podemos, no entanto, esquecer que a figura do Ministério Público remonta ao século XIV, altura em que consistia num representante do rei junto da autoridade judiciária, tendo sofrido posteriormente vários desenvolvimentos[1]. Ainda que o Ministério Público tenha tido desde cedo um papel interventivo no contencioso administrativo, esse papel mostrou-se inicialmente mais funcional que orgânico, só tendo assumido esta vertente no século XIX[2].
Depois de décadas em que a instituição se manteve intocável e sem alterações de relevo, em 2004 o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código do Processo dos Tribunais Administrativos atribuíram novas funções ao Ministério Público, tendo enaltecido o seu papel na justiça portuguesa.
Hoje o Ministério Público rege-se por um estatuto próprio- o Estatuto do Ministério Público.
No âmbito no contencioso administrativo, o Ministério Público encontra referências em vários diplomas normativos: são as referências de maior relevo as dos artigos 51º e 52º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) – versão do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 -, dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 53º alínea a) e 69º do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) - versão do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 – e do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa- doravante CRP.
No que concerne às suas funções, defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira[3] que estas podem ser conduzidas a quatro grupos:
i À representação do Estado- funcionado como advogado do Estado;
ii Ao exercício da acção penal;
iii À defesa da legalidade democrática, através da intervenção no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade;
iv E à defesa de grupos de cidadãos em situações de fraca protecção.
Já Sérvulo Correia[4] distingue apenas três grupos:
i A acção pública que tem por fim a apreciação da legalidade e da conduta da administração;
ii A coadjuvação do Tribunal na realização do Direito;
iii E o patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal.
É inequívoco, portanto, que as funções do Ministério Público estão longe de se esgotar na representação do Estado – pode assumir uma multiplicidade de “personagens” -, podendo até, em processos diferentes, assumir a posição de Autor ou de Réu, levando-nos a questionarmo-nos sobre a compatibilidade desta dualidade de papéis.
2. As Funções do Ministério Público
2.1.A Representação do Estado e Patrocínio Judiciário
Esta função está prevista em vários diplomas normativos, nomeadamente no artigo 51º n.º1 do ETAF, no artigo 11º n.º 1 do CPTA e no artigo 219º n.º1 CRP.
De acordo com o artigo 11º, n.º1 do ETAF o Ministério Público representa o Estado como seu advogado nas acções contra ele interpostas.
Esta representação deve ser tratada como uma representação orgânica e não como um patrocínio judiciário. O próprio Ministério Pública classifica deste modo a função em apreço. Tal entendimento não é acolhido por Alexandra Leitão que considera que apesar de não se tratar de um patrocínio judiciário, por não haver qualquer representação voluntária, também não se trata de representação orgânica, visto que o Ministério Público não é um órgão da pessoa colectiva Estado mas sim um órgão do Estado. Deste modo, a autora considera a representação do Estado pelo Ministério Público como um caso de representação legal[5].
É importante lembrar que o Estado não pode usufruir desta função do Ministério Público em lítigios que ocorram em Julgados de Paz ou em Tribunais Arbitrais.
Freitas do Amaral qualifica esta função como “um corpo de advogados do Estado”.
2.2.A Acção Pública
Afirma Sérvulo Correia que a acção pública consiste no poder de agir em juízo administrativo, titulado por um órgão do Estado ou de outra pessoa colectiva inserida na Administração, dirigido à obtenção de uma pronúncia jurisdicional de mérito sobre uma pretensão de repressão da violação da legalidade democrática numa situação determinada e concreta ou devida à actividade normativa da administração[6]. Defendem Vasco Pereira da Silva[7], Mário Aroso de Almeida[8] e Sérvulo Correia que esta é a mais importante função do Ministério Público.
Através desta função, pode o Ministério Público agir em defesa da legalidade, do interesse público, de interesses difusos e dos direitos fundamentais (cfr. Artigos 9º/2, 55º/1 b), 68º/1 c), 73º/3, 77º/1, 77º-A/1 b) e 3 c) e 104º/2 CPTA)[9]. O Ministério Público pode, também, em alguns casos dar continuidade a acções interpostas por particulares (artigo 62º CPTA).
Neste tipo de acção o Ministério Público tem legitimidade activa para impugnar actos administrativos, como resulta do artigo 55º, n.º1 alínea b) do CPTA, ou normas, nos termos do disposto no artigo 73º n.º1 e 3 do CPTA, por exemplo. No n.º4 do artigo 73º do CPTA entendemos que o legislador prevê um verdadeiro dever de actuação do Ministério Público ao enunciar que o mesmo tem o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória e geral assim que tenha conhecimento de três casos de desaplicação de uma norma com fundamento em ilegalidade.
Esta função é de algum modo incompatível com a função de representação do Estado: numa o Ministério Público age enquanto defensor da legalidade e de interesses colectivos essenciais enquanto que noutra aparece como defensor do interesse público, admitindo mesmo defender o Estado numa situação de ilegalidade. Assim, o Ministério Público numa acção pública contribui para uma justiça administrativa objectiva, ao passo que enquanto representante do Estado alimenta um sistema de justiça subjectivo, isto é, centrado unicamente no interesse do Estado. Alguns autores, como Francisco Narciso e Inês Seabra Henriques de Carvalho[10] defendem que na eventualidade de existirem dúvidas quanto à legalidade da pretensão defendida pelo Estado este não deve ser representado pelo Ministério Público.
2.3.Coadjuvação do Tribunal na realização do Direito – Amicus Curiae
A mais recente reforma do CPTA veio reduzir o leque de amplos poderes que o Ministério Público detinha: se antes este intervinha necessariamente em todos os processos, através da emissão do visto inicial e do visto final, e podiam levantar questões de carácter processual que obstassem à apreciação do mérito da causa hoje não é a assim. De 2015 em diante o Ministério Público apenas intervém nos processos uma única vez e em situações que considere que tal intervenção se justifica atendendo à matéria em causa e já não pode suscitar questões ou observações de índole processual.
O Ministério Público passou de algum modo de uma personagem principal para uma personagem secundária vendo, no entanto, ressalvado o seu papel de auxiliar do tribunal: pode pronunciar-se quanto ao mérito da causa (art. 9º/2 CPTA) e em processos impugnatórios tem competência para invocar causas de invalidade, para requerer diligências instrutórias (art. 85º/2 e 3 CPTA) e para se pronunciar em sede de recurso quando não tenha sido parte (art.146º/1 CPTA).
3 Conclusão
É inquestionável que a reforma do CPTA trouxe severas alterações ao papel do Ministério Público no panorama da justiça administrativa portuguesa, já não é, em contrapartida, tão consensual se o Ministério Público deve ou não manter a sua função de representante do Estado ou se se deve ocupar exclusivamente com a defesa da legalidade, não podendo actuar como Réu mas apenas como Autor em processos de Acção Pública.
Não nos podemos esquecer que “ao representar o Estado em Tribunal, o Ministério Público representa-nos a todos nós”[11] e que, por conseguinte, devemos ser capazes de o julgar e de o avaliar nunca esquecendo o ponto de chegada que queremos alcançar no contencioso administrativo português.
4 Bibliografia
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II;
- Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001;
- Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, Julgar, Lisboa, n.º 20 (Maio-Ago.), 2013;
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016;
- Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009;
- Leonor do Rosário Mesquita Furtado, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício., Coimbra, 2014;
Marta Castro Henriques Tavares
Aluna n.º 24091
[1] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II – Vide anotação ao artigo 219º
[2] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001.
[3] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II
[4] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001.
[5] Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, Julgar, Lisboa, n.º 20 (Maio-Ago.), 2013;
[6] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001;
[7] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009;
[10] Apud Alexandra Leitão, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, Julgar, Lisboa, n.º 20 (Maio-Ago.), 2013
[11] in http://ministerio-publico.pt
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