A
reforma do contencioso administrativo introduziu novos mecanismos destinados a
promover a celeridade processual e a existência de decisões judiciais mais
uniformes.[1]
A
alteração de 2002/2004 ao contencioso administrativo, introduziu um mecanismo
de agilização e economia processual previsto no artigo 48º CPTA, que teve como
objetivo primário reduzir o elevado número de processos cujos pedidos digam
respeito à mesma relação jurídica material ou que sejam suscetíveis de ser
decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo
tipo.
Este
regime, à época denominado “processos de massa” e atualmente “seleção de
processos com andamento prioritário”, distingue-se do regime da apensação de
processos (artigo 28º CPTA), visto que no primeiro, com a propositura de mais
de 10 ações “idênticas” se opera a uma escolha de um processo representativo
(processo-piloto ou processo-modelo) ao qual é dado andamento prioritário ou
caráter urgente (subjacente à remissão do artigo 48º nº 8 para o artigo 36º nº
4), suspendendo-se os demais, e ao qual o tribunal debaterá todos os aspetos de
facto e de direito, cuja decisão, salvo reação contrária dos autores dos
processos preteridos, será oficiosamente estendida aos últimos (artigo 48º nº
1, 3, 7 e 10 CPTA); no segundo, forma-se uma tramitação única para todos os
processos apensados e o tribunal pronuncia-se sobre todos os pedidos das partes
envolvidas, não ficando nenhum processo suspenso, e o juiz decide plenamente
sobre os seus aspetos e particularidades.
É
relevante referir, neste âmbito, que os autores dos processos que ficam em
espera têm como opção, no prazo de 30 dias: desistir do pedido ou recorrer da
sentença proferida no processo ou processos selecionados (48º nº 9 CPTA). Findo
este prazo, se o autor de um processo não selecionado nada fizer, presume-se
que aceita a decisão referente ao processo-piloto e a extensão oficiosa dos
efeitos desta ao seu caso.
Quanto
a esta possibilidade peculiar de recurso, a doutrina tem questionado a
legitimidade do autor do processo suspenso para recorrer dos efeitos de uma
decisão na qual não é parte. Carla Amado Gomes, afirma que “a notificação da decisão
no processo-piloto significa a extensão dos efeitos do caso-julgado aos
processos suspensos, que se aplica em conformidade caso, no prazo de 30 dias, o
autor do processo suspenso dela não desista ou recorra”.[2] Já Wladimir Brito, na
anterior reforma, considerava como melhor opção a extensão da decisão do
processo-piloto apenas depois de decorrido o prazo para o autor do processo
suspenso atuar.[3]
Adotamos a posição de Wladimir Brito, numa perspetiva de iure condendo, na
linha dos aperfeiçoamentos necessários ao CPTA evidenciados por Carla Amado
Gomes: a aplicação da decisão do processo-piloto ao processo suspenso só deverá
ser realizada após a estabilização da instância, com o esgotamento do prazo de
recurso da decisão.
Resta
salientar a estranheza do regime quanto à ausência de qualquer menção à
possibilidade de recurso por parte do(s) autor(es) do processo-piloto, dos
contrainteressados ou mesmo do réu. A doutrina tem, porém, admitido a sua
legitimidade para recorrer em primeira linha.[4]
Aquando
da criação deste regime, colocou-se imediatamente a questão de saber se a
suspensão da tramitação da grande maioria dos processos (não selecionados ou
preteridos) poderia representar uma violação do direito à tutela efetiva e do
princípio da igualdade. Nessa sede, poder-se-á defender que os autores dos
processos suspensos recuperam o tempo em espera com a rapidez de análise da
questão no processo-piloto que, posteriormente, lhes será aplicada e, como tal,
essa alegada violação, não se verifica na prática.[5]
A
principal novidade introduzida pela revisão do CPTA em 2015 consistiu na
criação de uma nova espécie de processo declarativo urgente, o contencioso dos
atos administrativos no âmbito dos procedimentos em massa, previsto no artigo
99º CPTA, que compreende as ações respeitantes à prática ou omissão de atos
administrativos no âmbito de procedimentos com mais de 50 participantes, nos
domínios dos concursos de pessoal, procedimentos de realização de provas e
procedimentos de recrutamento.[6] Nesta nova espécie de
processo declarativo urgente, o legislador consagra a apensação obrigatória dos
processos que se refiram ao mesmo procedimento daquele que tiver sido escolhido
como processo-piloto, caso se verifiquem os pressupostos de regime constantes
no 99º CPTA.[7]
Os
regimes dos artigos 48º e 99º CPTA são díspares: o primeiro, consagra um
mecanismo de agilização processual que confere urgência a um único processo,
enquanto que o segundo remete para um processo de estabilização rápida de um
contencioso de massa, que reconhece todos os processos como urgentes e
apensa-os.[8] Por outro lado, no artigo
48º CPTA há espaço para audição das partes, enquanto que tal não ocorre no
regime do artigo 99º CPTA. Por fim, o primeiro estabelece um prazo de três
meses para propositura da ação, tendo em conta o prazo geral fixado no artigo
58º nº 1 al. b) CPTA e o segundo, pauta-se pelo prazo de um mês (99º CPTA).
A
doutrina tem discutido a possibilidade de interconexão de ambos os regimes.
Para Carla Amado Gomes, essa interconexão é possível quando um processo entre
pelo artigo 99º CPTA e termine no 48º CPTA. A referida autora explicita a sua
tese com base num exemplo de um procedimento no qual participaram 60 pessoas,
mas que só 40 intentam uma ação pelos atos praticados. Só depois de decorrido
um mês da propositura das ações, os processos podem ser classificados como
urgentes, implicando uma suspensão da tramitação dos mesmos até ao término do
prazo fixado no 99º nº 2 CPTA. Neste compasso de espera, poder-se-ia reunir
todos os processos, selecionar o mais representativo, tramitando-o de forma
urgente, emitir a decisão e aplicá-la aos restantes.[9] Neste sentido, a autora
ainda alega que mecanismo do artigo 99º CPTA consiste numa realidade
“cerceadora do direito à tutela efetiva (…) e constrangedora do princípio da
boa administração da justiça”, apelando a uma utilização do mesmo apenas nas
situações onde, em função do número de processos, tal for justificado.[10]
Quanto
à possibilidade de um processo entrar pelo 48º CPTA e terminar no 99º CPTA, tal
não se afigura possível pela limitação do prazo vigente para a propositura da
ação, em sede do contencioso dos procedimentos de massa.
Por
último, é essencial clarificar alguns aspetos práticos que podem suscitar
algumas questões: o prazo de apresentação da ação (um mês, conforme o artigo
99º nº 2 CPTA) deve-se contar após a publicação do ato plural que desencadeará
múltiplas reações por parte dos participantes[11] e a urgência inerente a
este processo não faz precludir a possibilidade de recorrer a uma tutela
cautelar cumulativa (neste âmbito, o artigo 128º CPTA).[12]
É
necessária alguma cautela na análise deste novo regime criado, visto que o seu
efeito concentracionista e o curto prazo para a decisão do juiz (30 dias,
conforme o artigo 99º nº 5 al. b) CPTA) poderão conduzir à má administração da
justiça.[13]
Em
suma, com a reforma de 2015 instaurou-se um regime, por um lado, de “massinha”
tendo-se reduzido o número de processos intentados no(s) tribunal(is) de 20
processos (como constava no CPTA após a reforma de 2004) para 10, conforme o
regime do artigo 48º CPTA e, por outro lado, procedeu-se à “massificação” do processo
urgente dos procedimentos de massa, pois o legislador dificultou o acesso ao
mesmo, tendo fixado como limite mínimo procedimentos com mais de 50 pessoas e o
facto de se estar perante um dos casos previstos no 99º nº 1 CPTA.
[1] Cfr.
SILVEIRA, João Tiago - “O Mecanismo dos Processos em Massa no Contencioso
Administrativo” em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda,
Volume IV, pág. 431 a 462.
[2] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 638.
[3] Cfr.
BRITO, Wladimir, Lições de Direito Processual Administrativo, pág. 215, Coimbra
Editora, 2008.
[4] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 638.
[5] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos em massa e o contencioso dos procedimentos em
massa: o que os une e o que os separa” em Comentários à revisão do CPTA e do
ETAF, página 631, Editora AAFDL, 2016.
[6] Cfr.
CADILHA, Carlos Alberto Fernandes – “A Revisão do CPTA: Aspetos inovatórios” em
Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, pág. 29, Editora AAFDL, 2016
[7] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos..., cit., pág. 632.
[8] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 641.
[9] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 642.
[10] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 643.
[11] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 650.
[12] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 652.
[13] Cfr.
GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 648.
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