terça-feira, 1 de novembro de 2016

“Massa e Massinha”: O contencioso dos procedimentos de massa e a seleção dos processos com andamento prioritário



A reforma do contencioso administrativo introduziu novos mecanismos destinados a promover a celeridade processual e a existência de decisões judiciais mais uniformes.[1]
A alteração de 2002/2004 ao contencioso administrativo, introduziu um mecanismo de agilização e economia processual previsto no artigo 48º CPTA, que teve como objetivo primário reduzir o elevado número de processos cujos pedidos digam respeito à mesma relação jurídica material ou que sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.
Este regime, à época denominado “processos de massa” e atualmente “seleção de processos com andamento prioritário”, distingue-se do regime da apensação de processos (artigo 28º CPTA), visto que no primeiro, com a propositura de mais de 10 ações “idênticas” se opera a uma escolha de um processo representativo (processo-piloto ou processo-modelo) ao qual é dado andamento prioritário ou caráter urgente (subjacente à remissão do artigo 48º nº 8 para o artigo 36º nº 4), suspendendo-se os demais, e ao qual o tribunal debaterá todos os aspetos de facto e de direito, cuja decisão, salvo reação contrária dos autores dos processos preteridos, será oficiosamente estendida aos últimos (artigo 48º nº 1, 3, 7 e 10 CPTA); no segundo, forma-se uma tramitação única para todos os processos apensados e o tribunal pronuncia-se sobre todos os pedidos das partes envolvidas, não ficando nenhum processo suspenso, e o juiz decide plenamente sobre os seus aspetos e particularidades.
É relevante referir, neste âmbito, que os autores dos processos que ficam em espera têm como opção, no prazo de 30 dias: desistir do pedido ou recorrer da sentença proferida no processo ou processos selecionados (48º nº 9 CPTA). Findo este prazo, se o autor de um processo não selecionado nada fizer, presume-se que aceita a decisão referente ao processo-piloto e a extensão oficiosa dos efeitos desta ao seu caso.
Quanto a esta possibilidade peculiar de recurso, a doutrina tem questionado a legitimidade do autor do processo suspenso para recorrer dos efeitos de uma decisão na qual não é parte. Carla Amado Gomes, afirma que “a notificação da decisão no processo-piloto significa a extensão dos efeitos do caso-julgado aos processos suspensos, que se aplica em conformidade caso, no prazo de 30 dias, o autor do processo suspenso dela não desista ou recorra”.[2] Já Wladimir Brito, na anterior reforma, considerava como melhor opção a extensão da decisão do processo-piloto apenas depois de decorrido o prazo para o autor do processo suspenso atuar.[3] Adotamos a posição de Wladimir Brito, numa perspetiva de iure condendo, na linha dos aperfeiçoamentos necessários ao CPTA evidenciados por Carla Amado Gomes: a aplicação da decisão do processo-piloto ao processo suspenso só deverá ser realizada após a estabilização da instância, com o esgotamento do prazo de recurso da decisão.
Resta salientar a estranheza do regime quanto à ausência de qualquer menção à possibilidade de recurso por parte do(s) autor(es) do processo-piloto, dos contrainteressados ou mesmo do réu. A doutrina tem, porém, admitido a sua legitimidade para recorrer em primeira linha.[4]
Aquando da criação deste regime, colocou-se imediatamente a questão de saber se a suspensão da tramitação da grande maioria dos processos (não selecionados ou preteridos) poderia representar uma violação do direito à tutela efetiva e do princípio da igualdade. Nessa sede, poder-se-á defender que os autores dos processos suspensos recuperam o tempo em espera com a rapidez de análise da questão no processo-piloto que, posteriormente, lhes será aplicada e, como tal, essa alegada violação, não se verifica na prática.[5]
A principal novidade introduzida pela revisão do CPTA em 2015 consistiu na criação de uma nova espécie de processo declarativo urgente, o contencioso dos atos administrativos no âmbito dos procedimentos em massa, previsto no artigo 99º CPTA, que compreende as ações respeitantes à prática ou omissão de atos administrativos no âmbito de procedimentos com mais de 50 participantes, nos domínios dos concursos de pessoal, procedimentos de realização de provas e procedimentos de recrutamento.[6] Nesta nova espécie de processo declarativo urgente, o legislador consagra a apensação obrigatória dos processos que se refiram ao mesmo procedimento daquele que tiver sido escolhido como processo-piloto, caso se verifiquem os pressupostos de regime constantes no 99º CPTA.[7]
Os regimes dos artigos 48º e 99º CPTA são díspares: o primeiro, consagra um mecanismo de agilização processual que confere urgência a um único processo, enquanto que o segundo remete para um processo de estabilização rápida de um contencioso de massa, que reconhece todos os processos como urgentes e apensa-os.[8] Por outro lado, no artigo 48º CPTA há espaço para audição das partes, enquanto que tal não ocorre no regime do artigo 99º CPTA. Por fim, o primeiro estabelece um prazo de três meses para propositura da ação, tendo em conta o prazo geral fixado no artigo 58º nº 1 al. b) CPTA e o segundo, pauta-se pelo prazo de um mês (99º CPTA).
A doutrina tem discutido a possibilidade de interconexão de ambos os regimes. Para Carla Amado Gomes, essa interconexão é possível quando um processo entre pelo artigo 99º CPTA e termine no 48º CPTA. A referida autora explicita a sua tese com base num exemplo de um procedimento no qual participaram 60 pessoas, mas que só 40 intentam uma ação pelos atos praticados. Só depois de decorrido um mês da propositura das ações, os processos podem ser classificados como urgentes, implicando uma suspensão da tramitação dos mesmos até ao término do prazo fixado no 99º nº 2 CPTA. Neste compasso de espera, poder-se-ia reunir todos os processos, selecionar o mais representativo, tramitando-o de forma urgente, emitir a decisão e aplicá-la aos restantes.[9] Neste sentido, a autora ainda alega que mecanismo do artigo 99º CPTA consiste numa realidade “cerceadora do direito à tutela efetiva (…) e constrangedora do princípio da boa administração da justiça”, apelando a uma utilização do mesmo apenas nas situações onde, em função do número de processos, tal for justificado.[10]
Quanto à possibilidade de um processo entrar pelo 48º CPTA e terminar no 99º CPTA, tal não se afigura possível pela limitação do prazo vigente para a propositura da ação, em sede do contencioso dos procedimentos de massa.
Por último, é essencial clarificar alguns aspetos práticos que podem suscitar algumas questões: o prazo de apresentação da ação (um mês, conforme o artigo 99º nº 2 CPTA) deve-se contar após a publicação do ato plural que desencadeará múltiplas reações por parte dos participantes[11] e a urgência inerente a este processo não faz precludir a possibilidade de recorrer a uma tutela cautelar cumulativa (neste âmbito, o artigo 128º CPTA).[12]
É necessária alguma cautela na análise deste novo regime criado, visto que o seu efeito concentracionista e o curto prazo para a decisão do juiz (30 dias, conforme o artigo 99º nº 5 al. b) CPTA) poderão conduzir à má administração da justiça.[13]
Em suma, com a reforma de 2015 instaurou-se um regime, por um lado, de “massinha” tendo-se reduzido o número de processos intentados no(s) tribunal(is) de 20 processos (como constava no CPTA após a reforma de 2004) para 10, conforme o regime do artigo 48º CPTA e, por outro lado, procedeu-se à “massificação” do processo urgente dos procedimentos de massa, pois o legislador dificultou o acesso ao mesmo, tendo fixado como limite mínimo procedimentos com mais de 50 pessoas e o facto de se estar perante um dos casos previstos no 99º nº 1 CPTA.



[1] Cfr. SILVEIRA, João Tiago - “O Mecanismo dos Processos em Massa no Contencioso Administrativo” em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, Volume IV, pág. 431 a 462.
[2] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 638.
[3] Cfr. BRITO, Wladimir, Lições de Direito Processual Administrativo, pág. 215, Coimbra Editora, 2008.
[4] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 638.
[5] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos em massa e o contencioso dos procedimentos em massa: o que os une e o que os separa” em Comentários à revisão do CPTA e do ETAF, página 631, Editora AAFDL, 2016.
[6] Cfr. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes – “A Revisão do CPTA: Aspetos inovatórios” em Comentários à Revisão do CPTA e do ETAF, pág. 29, Editora AAFDL, 2016
[7] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos..., cit., pág. 632.
[8] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 641.
[9] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 642.
[10] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 643.
[11] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 650.
[12] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 652.
[13] Cfr. GOMES, Carla Amado – “Processos…, cit., pág. 648.

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