O
Direito português atual permite-nos intentar ações no âmbito do Direito
Administrativo. Não estamos assim limitados a propor ações somente a nível
interpessoal, a nível privado ou privado-empresarial. Podemos também
defender-nos e intentar ações contra entidades públicas e contra a
Administração Pública, não precisando de temer em como poderemos estar a sofrer
injustiças pela parte da mesma (ou, pelo menos, assim é em teoria – a discussão
sobre se se trata de uma realidade utópica não será abordada na presente
dissertação).
Não
obstante, para que a ação seja intentada nos tribunais Administrativos e
Fiscais, estes têm de ser competentes para o efeito. Abstraindo-nos então da
competência material, hierárquica e territorial – sem dúvida importantes – é,
em primeiro lugar, crucial averiguar a questão da competência jurisdicional.
Sobre
este aspecto dispõe o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais (doravante designado por “ETAF”). Nos seus números 1 e 2, este artigo
apresenta uma vasta panóplia – ainda que não taxativa[1]
– de situações e questões que deverão ser apreciadas pelos “tribunais de jurisdição administrativa e
fiscal”. No entanto, existem também matérias expressamente proibidas de
integrar o âmbito da jurisdição em causa. Trata-se das situações enunciadas nos
números 3 e 4 do artigo 4º do ETAF. Ainda que todas elas sejam de extrema
importância, debruçar-nos-emos somente sobre uma: a questão exposta no artigo
4º nº3 a) do ETAF.
O
referido artigo faculta-nos com a informação de que estão excluídos do âmbito
da jurisdição administrativa os “atos
praticados no exercício da função política e legislativa”. É de realçar que
a versão original desta disposição era bastante diferente. O primeiro ETAF
aprovado, ou seja, o DL nº 129/84, de 27 de Abril, que surgiu na sequência da
revisão constitucional de 1982,[2]
enunciava que eram excluídos os “actos
praticados no exercício da função política e responsabilidade pelos danos
decorrentes desse exercício” (art. 4º nº1 a) do DL nº 129/84). Quase duas
décadas depois, pois em 2002, um novo ETAF foi aprovado, revogando o DL nº
129/84. Com esta mudança foi retirado do equivalente artigo (de momento art. 4º
nº2 a) ETAF) a questão da responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício
da função política mas, em contrapartida, estipulou-se que também serão
excluídos da jurisdição administrativa os atos praticados no exercício da
função legislativa. Finalmente, com a Reforma de 2015, deparamo-nos hoje com um
artigo exatamente igual ao artigo do ETAF de 2002, tanto na sua substância,
como na própria formulação, mas que passou agora a ser o nº3a) do artigo 4º ETAF.
O
problema deste artigo não se prende com a “função legislativa”. Esta, tal como
expõem MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, é uma atividade que
elabora preceitos com carácter regulador da vida colectiva e que incidem
diretamente nos cidadãos.[3]
Desta forma serão atos legislativos todos aqueles que, dispondo de uma forma
geral e abstracta sobre questões relativas à vida dos cidadãos, serão editados
sob forma de diploma legislativo.[4]
Mais
problemático, no entanto, torna-se o entendimento dos “atos praticados no exercício da função política”. O que é então um
ato político? Como podemos distingui-lo de um ato administrativo?
A
questão tornou-se particularmente crucial, demonstrando a necessidade de
encontrar uma solução, na altura em que se admitiu a chamada Teoria do Móbil Político
pelo Tribunal Administrativo. Segundo esta teoria, era o próprio Executivo (ou
seja, o autor dos atos emanados) que classificava o ato em causa como
administrativo ou como político. Se tal não bastasse, ao Executivo bastava
justificar um ato como político, argumentando que este foi emanado “em razão do
Estado”, em razão da ordem política. Desta forma tornou-se extremamente fácil
“esconder” os atos administrativos sob a forma de atos políticos, de forma a
que estes não pudessem ser impugnados no Tribunal Administrativo. Tal como diz
AFONSO QUEIRÓ, o Executivo podia deste modo legitimar “todos os abusos do poder, todos os prejuízos para os particulares a que
o Legislativo, como fiscal da Administração, não quisesse ou não estivesse em
condições práticas de obtemperar”.[5]
Assim, a caracterização dos atos como administrativos ou políticos dependia de
forma total e absoluta do livre arbítrio do Executivo, uma vez que não existia
nenhum outro critério de qualificação dos atos, o que conduziu a uma tremenda
impunibilidade do Executivo. Apesar de tal parecer impensável, em Portugal
houve quem defendesse esta teoria – como foi o caso de RUI MACHETE e AFONSO
QUEIRÓ (ainda que este segundo admitisse esta teoria somente como uma
possibilidade).[6]
Perante
este abuso de poder e flagrante impunibilidade, a Teoria do Móbil Político foi
abandonada. Sucedeu-lhe a construção jurisprudencial francesa que definia ela
própria quais os atos excluídos da fiscalização jurisprudencial. Seriam eles:
os atos respeitantes às relações do Legislativo e do Executivo, atos de
segurança pública interna em casos de crise, atos relativos à segurança
externa, atos relativos a relações diplomáticas, ao chamado “direito de graça”
e alguns “factos de guerra”.[7]
No entanto, esta listagem teve um carácter muito flexível e casuístico e, como
aponta MARCO CALDEIRA, acabou por ser uma versão inversa da Teoria do Móbil
Político.[8]
Ainda assim, ela tendia a ser “absorvida
pela teoria mais ampla dos actos discricionários”[9]
em Portugal.
Finalmente,
chegámos ao referido anteriormente DL nº 129/84 e, posteriormente, ao ETAF
atual de hoje em dia. A dúvida permanece: o que são atos políticos?
Como
claramente se retira do artigo 4º nº3 a) do ETAF, os atos políticos estão
indissociavelmente ligados à função política e, portanto, é neste conceito que
devemos procurar a nossa resposta. Tentemos então explicar no que consiste a
dita função política. Ora, segundo VIEIRA DE ANDRADE, esta é uma função
praticada por órgãos supremos e que se destina a prosseguir os interesses
fundamentais da comunidade.[10]
De encontro com esta posição vai BLANCO DE MORAIS, dizendo que são atos
políticos os emanados dos órgãos de soberania, sendo que a própria função
consiste na “atividade de ordenação da
vida coletiva assente em valores, ideologias e programas e exercida em
benefício da mesma coletividade”, de maneira a pressupor uma tomada de decisões que definam o
interesse público que se deve prosseguir, de forma o preencher os fins do
Estado. [11][12]
Podemos complementar esta posição com o entendimento de AFONSO QUEIRÓ que
divide os atos políticos em duas categorias: i) os atos que dizem respeito à
“política externa” do Estado ou às suas relações exteriores e à segurança
externa; ii) atos auxiliares de direito constitucional, como por exemplo os
atos praticados pelo Presidente da República ou pela Assembleia da República.[13]
Não
obstante, não basta verificarmos quais são as posições doutrinárias sobre o
conceito de função e atos políticos. Tal atuação levar-nos-ia a uma compreensão
do assunto puramente formal e, eventualmente, redundante. É, desta forma,
necessário recorrer à jurisprudência dos tribunais portugueses.
A
jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (doravante designado por
“STA”) nem sempre tem sido uniforme no
que toca à densificação do conceito de ato praticado no exercício da função
política. No entanto, no decorrer dos últimos anos, verificou-se nas decisões
emanadas pelos tribunais, cada vez mais uma confluência quanto a esta questão.
A
título de exemplo, analisemos o Acórdão do STA de 05/12/2007, Processo nº
01214/05. Uma das situações analisadas neste processo foi a questão de um ato
de exoneração do requerente do cargo de Presidente da Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento Regional do Norte. Surgiu a dúvida se o referido ato de
exoneração foi praticado no exercício da função política e se,
consecutivamente, podia estar sujeito à jurisdição administrativa. O STA
admitiu que o legislador não definiu o que se deva entender por ato praticado
no exercício da função política e entendeu que, perante esta situação, para
averiguar se estamos perante um ato excluído da jurisdição administrativa, deve-se
fazer um apelo a critérios materiais e não orgânicos ou formais (ou seja, que
se prendem com o autor e a forma do ato praticado). Concluiu então que “serão actos políticos os praticados no
desempenho da função política e que têm por objecto directo e imediato a
conservação da sociedade política e a definição e prossecução dos interesses
essenciais da colectividade mediante a livre escolha dos rumos ou soluções
consideradas preferíveis, exprimindo tais actos, precisamente, as opções do
poder político, as quais não podem, por isso, ser sujeitas a controlo
jurisdicional, por este se ter de situar ao nível do controle de legalidade,
não podendo os tribunais exercer, por isso, qualquer tipo de apreciação quanto
ao mérito ou demérito de tais volições primárias dos órgãos políticos, quando
actuem no exercício da função política. No âmbito da função política cabe,
designadamente, definir primária e globalmente o interesse público,
interpretando-se os fins do Estado e elegendo os meios que em cada momento
sejam tidos por adequados à sua concreta prossecução.”. Desta forma, o STA
chegou à conclusão de que o ato de exoneração em causa não teve natureza de ato
praticado no exercício da função política, uma vez que não estavam em causa
escolhas fundamentais para a orientação dos destinos da colectividade. Desta
forma, o ato podia ter sido sujeito ao âmbito da jurisdição administrativa.
No
mesmo sentido, podemos apontar outros acórdãos, como por exemplo: o acórdão de
06/02/2001, recurso nº45990, em que se considerou que “actos políticos são os actos próprios da função política e cujo objecto
directo e imediato é a definição do interesse geral da comunidade, tendo em
vista a conservação e desenvolvimento desta” e que “a função política corresponde à prática de actos que exprimem opções
sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade”,
bem como o acórdão do STA, processo nº 0637/15 em que se entendeu que os atos
para serem considerados como políticos têm de exprimir o interesse geral da
comunidade nacional e possuir um conteúdo inovador.
Podemos
então concluir esta dissertação, com a posição enunciada por DIOGO FREITAS DE
AMARAL: a política tem uma natureza criadora, cabendo-lhe inovar tudo aquilo
que seja essencial para o desenvolvimento da comunidade, enquanto que a
Administração Pública tem como objectivo satisfazer continuadamente as
necessidades colectivas, como a segurança, a cultura e o bem-estar,
concretizando em termos concretos aquilo que foi definido pela política.[14]
Serão então atos praticados no exercício da função política todos aqueles que,
tendo em conta o interesse e desenvolvimento da comunidade, dos cidadãos, terão
um conteúdo completamente inovatório. Mesmo que exista alguma regulação
anterior sobre a questão, se houver uma matéria ex novo que introduz elementos não abordados na regulação anterior,
então o ato em causa será político e, consecutivamente, à luz do artigo 4º nº3
a) do ETAF será excluído do âmbito da jurisdição administrativa.
[1] Antes da Reforma de 2015, o artigo 4º do ETAF apresentava a seguinte
redação: “Compete aos tribunais da
jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objeto: (...)”. Com a Reforma, a expressão “nomeadamente”
foi abandonada, o que parece exprimir uma clara intenção do legislador em
tornar o elenco deste artigo, um elenco não taxativo.
[2] Esta reforma, segundo o VASCO PEREIRA DA SILVA, teve como objetivo “adequar a regulação de justiça
administrativa às opções constitucionais de plena jurisdicionalização e de
proteção jurídica subjectiva (...)” – Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise (2009). P.197
[3] Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral (2004), p.39
[6] Mário Esteves de Oliveira, Direito
Administrativo (1984), p.314 e ss.
[7] Marco Caldeira, Actos Políticos,
Direitos Fundamentais e Constituição (2014), p.70.
[8] Marco Caldeira, Actos Políticos
..., op.cit., p.69
[9] Afonso Rodrigues Queiró, Teoria
dos Actos ..., op.cit., p.567.
[11] Carlos Blanco de Morais, Curso de
Direito Constitucional: As funções do Estado e o Poder Legislativo no
Ordenamento Português, Tomo I (2012), p.32 e ss.
[12] É de realçar que BLANCO
DE MORAIS considera a função legislativa a mais importante atividade política
e, portanto, faz uma destrinça entre função política lato sensu e stricto sensu:
a segunda é a função política propriamente dita – aquela que emana normas de
função política – e a primeira integra a função política stricto sensu e a função legislativa.
[14] Diogo Freitas de Amaral, Direito
Administrativo, vol. I (1986), p.41
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