terça-feira, 1 de novembro de 2016

Função Política e Atos Políticos perante o art. 4º nº3 a) do ETAF.

O Direito português atual permite-nos intentar ações no âmbito do Direito Administrativo. Não estamos assim limitados a propor ações somente a nível interpessoal, a nível privado ou privado-empresarial. Podemos também defender-nos e intentar ações contra entidades públicas e contra a Administração Pública, não precisando de temer em como poderemos estar a sofrer injustiças pela parte da mesma (ou, pelo menos, assim é em teoria – a discussão sobre se se trata de uma realidade utópica não será abordada na presente dissertação).
Não obstante, para que a ação seja intentada nos tribunais Administrativos e Fiscais, estes têm de ser competentes para o efeito. Abstraindo-nos então da competência material, hierárquica e territorial – sem dúvida importantes – é, em primeiro lugar, crucial averiguar a questão da competência jurisdicional.
Sobre este aspecto dispõe o artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante designado por “ETAF”). Nos seus números 1 e 2, este artigo apresenta uma vasta panóplia – ainda que não taxativa[1] – de situações e questões que deverão ser apreciadas pelos “tribunais de jurisdição administrativa e fiscal”. No entanto, existem também matérias expressamente proibidas de integrar o âmbito da jurisdição em causa. Trata-se das situações enunciadas nos números 3 e 4 do artigo 4º do ETAF. Ainda que todas elas sejam de extrema importância, debruçar-nos-emos somente sobre uma: a questão exposta no artigo 4º nº3 a) do ETAF.
O referido artigo faculta-nos com a informação de que estão excluídos do âmbito da jurisdição administrativa os “atos praticados no exercício da função política e legislativa”. É de realçar que a versão original desta disposição era bastante diferente. O primeiro ETAF aprovado, ou seja, o DL nº 129/84, de 27 de Abril, que surgiu na sequência da revisão constitucional de 1982,[2] enunciava que eram excluídos os “actos praticados no exercício da função política e responsabilidade pelos danos decorrentes desse exercício” (art. 4º nº1 a) do DL nº 129/84). Quase duas décadas depois, pois em 2002, um novo ETAF foi aprovado, revogando o DL nº 129/84. Com esta mudança foi retirado do equivalente artigo (de momento art. 4º nº2 a) ETAF) a questão da responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício da função política mas, em contrapartida, estipulou-se que também serão excluídos da jurisdição administrativa os atos praticados no exercício da função legislativa. Finalmente, com a Reforma de 2015, deparamo-nos hoje com um artigo exatamente igual ao artigo do ETAF de 2002, tanto na sua substância, como na própria formulação, mas que passou agora a ser o nº3a) do artigo 4º ETAF.
O problema deste artigo não se prende com a “função legislativa”. Esta, tal como expõem MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, é uma atividade que elabora preceitos com carácter regulador da vida colectiva e que incidem diretamente nos cidadãos.[3] Desta forma serão atos legislativos todos aqueles que, dispondo de uma forma geral e abstracta sobre questões relativas à vida dos cidadãos, serão editados sob forma de diploma legislativo.[4]
Mais problemático, no entanto, torna-se o entendimento dos “atos praticados no exercício da função política”. O que é então um ato político? Como podemos distingui-lo de um ato administrativo?
A questão tornou-se particularmente crucial, demonstrando a necessidade de encontrar uma solução, na altura em que se admitiu a chamada Teoria do Móbil Político pelo Tribunal Administrativo. Segundo esta teoria, era o próprio Executivo (ou seja, o autor dos atos emanados) que classificava o ato em causa como administrativo ou como político. Se tal não bastasse, ao Executivo bastava justificar um ato como político, argumentando que este foi emanado “em razão do Estado”, em razão da ordem política. Desta forma tornou-se extremamente fácil “esconder” os atos administrativos sob a forma de atos políticos, de forma a que estes não pudessem ser impugnados no Tribunal Administrativo. Tal como diz AFONSO QUEIRÓ, o Executivo podia deste modo legitimar “todos os abusos do poder, todos os prejuízos para os particulares a que o Legislativo, como fiscal da Administração, não quisesse ou não estivesse em condições práticas de obtemperar”.[5] Assim, a caracterização dos atos como administrativos ou políticos dependia de forma total e absoluta do livre arbítrio do Executivo, uma vez que não existia nenhum outro critério de qualificação dos atos, o que conduziu a uma tremenda impunibilidade do Executivo. Apesar de tal parecer impensável, em Portugal houve quem defendesse esta teoria – como foi o caso de RUI MACHETE e AFONSO QUEIRÓ (ainda que este segundo admitisse esta teoria somente como uma possibilidade).[6]
Perante este abuso de poder e flagrante impunibilidade, a Teoria do Móbil Político foi abandonada. Sucedeu-lhe a construção jurisprudencial francesa que definia ela própria quais os atos excluídos da fiscalização jurisprudencial. Seriam eles: os atos respeitantes às relações do Legislativo e do Executivo, atos de segurança pública interna em casos de crise, atos relativos à segurança externa, atos relativos a relações diplomáticas, ao chamado “direito de graça” e alguns “factos de guerra”.[7] No entanto, esta listagem teve um carácter muito flexível e casuístico e, como aponta MARCO CALDEIRA, acabou por ser uma versão inversa da Teoria do Móbil Político.[8] Ainda assim, ela tendia a ser “absorvida pela teoria mais ampla dos actos discricionários[9] em Portugal.
Finalmente, chegámos ao referido anteriormente DL nº 129/84 e, posteriormente, ao ETAF atual de hoje em dia. A dúvida permanece: o que são atos políticos?
Como claramente se retira do artigo 4º nº3 a) do ETAF, os atos políticos estão indissociavelmente ligados à função política e, portanto, é neste conceito que devemos procurar a nossa resposta. Tentemos então explicar no que consiste a dita função política. Ora, segundo VIEIRA DE ANDRADE, esta é uma função praticada por órgãos supremos e que se destina a prosseguir os interesses fundamentais da comunidade.[10] De encontro com esta posição vai BLANCO DE MORAIS, dizendo que são atos políticos os emanados dos órgãos de soberania, sendo que a própria função consiste na “atividade de ordenação da vida coletiva assente em valores, ideologias e programas e exercida em benefício da mesma coletividade”, de maneira a  pressupor uma tomada de decisões que definam o interesse público que se deve prosseguir, de forma o preencher os fins do Estado. [11][12] Podemos complementar esta posição com o entendimento de AFONSO QUEIRÓ que divide os atos políticos em duas categorias: i) os atos que dizem respeito à “política externa” do Estado ou às suas relações exteriores e à segurança externa; ii) atos auxiliares de direito constitucional, como por exemplo os atos praticados pelo Presidente da República ou pela Assembleia da República.[13]
Não obstante, não basta verificarmos quais são as posições doutrinárias sobre o conceito de função e atos políticos. Tal atuação levar-nos-ia a uma compreensão do assunto puramente formal e, eventualmente, redundante. É, desta forma, necessário recorrer à jurisprudência dos tribunais portugueses.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (doravante designado por “STA”)  nem sempre tem sido uniforme no que toca à densificação do conceito de ato praticado no exercício da função política. No entanto, no decorrer dos últimos anos, verificou-se nas decisões emanadas pelos tribunais, cada vez mais uma confluência quanto a esta questão.
A título de exemplo, analisemos o Acórdão do STA de 05/12/2007, Processo nº 01214/05. Uma das situações analisadas neste processo foi a questão de um ato de exoneração do requerente do cargo de Presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. Surgiu a dúvida se o referido ato de exoneração foi praticado no exercício da função política e se, consecutivamente, podia estar sujeito à jurisdição administrativa. O STA admitiu que o legislador não definiu o que se deva entender por ato praticado no exercício da função política e entendeu que, perante esta situação, para averiguar se estamos perante um ato excluído da jurisdição administrativa, deve-se fazer um apelo a critérios materiais e não orgânicos ou formais (ou seja, que se prendem com o autor e a forma do ato praticado). Concluiu então que “serão actos políticos os praticados no desempenho da função política e que têm por objecto directo e imediato a conservação da sociedade política e a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade mediante a livre escolha dos rumos ou soluções consideradas preferíveis, exprimindo tais actos, precisamente, as opções do poder político, as quais não podem, por isso, ser sujeitas a controlo jurisdicional, por este se ter de situar ao nível do controle de legalidade, não podendo os tribunais exercer, por isso, qualquer tipo de apreciação quanto ao mérito ou demérito de tais volições primárias dos órgãos políticos, quando actuem no exercício da função política. No âmbito da função política cabe, designadamente, definir primária e globalmente o interesse público, interpretando-se os fins do Estado e elegendo os meios que em cada momento sejam tidos por adequados à sua concreta prossecução.”. Desta forma, o STA chegou à conclusão de que o ato de exoneração em causa não teve natureza de ato praticado no exercício da função política, uma vez que não estavam em causa escolhas fundamentais para a orientação dos destinos da colectividade. Desta forma, o ato podia ter sido sujeito ao âmbito da jurisdição administrativa.
No mesmo sentido, podemos apontar outros acórdãos, como por exemplo: o acórdão de 06/02/2001, recurso nº45990, em que se considerou que “actos políticos são os actos próprios da função política e cujo objecto directo e imediato é a definição do interesse geral da comunidade, tendo em vista a conservação e desenvolvimento desta” e que “a função política corresponde à prática de actos que exprimem opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade”, bem como o acórdão do STA, processo nº 0637/15 em que se entendeu que os atos para serem considerados como políticos têm de exprimir o interesse geral da comunidade nacional e possuir um conteúdo inovador.
Podemos então concluir esta dissertação, com a posição enunciada por DIOGO FREITAS DE AMARAL: a política tem uma natureza criadora, cabendo-lhe inovar tudo aquilo que seja essencial para o desenvolvimento da comunidade, enquanto que a Administração Pública tem como objectivo satisfazer continuadamente as necessidades colectivas, como a segurança, a cultura e o bem-estar, concretizando em termos concretos aquilo que foi definido pela política.[14] Serão então atos praticados no exercício da função política todos aqueles que, tendo em conta o interesse e desenvolvimento da comunidade, dos cidadãos, terão um conteúdo completamente inovatório. Mesmo que exista alguma regulação anterior sobre a questão, se houver uma matéria ex novo que introduz elementos não abordados na regulação anterior, então o ato em causa será político e, consecutivamente, à luz do artigo 4º nº3 a) do ETAF será excluído do âmbito da jurisdição administrativa.




 Zuzanna Sadlowska
Aluna nº 24201





[1] Antes da Reforma de 2015, o artigo 4º do ETAF apresentava a seguinte redação: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: (...)”. Com a Reforma, a expressão “nomeadamente” foi abandonada, o que parece exprimir uma clara intenção do legislador em tornar o elenco deste artigo, um elenco não taxativo.

[2] Esta reforma, segundo o VASCO PEREIRA DA SILVA, teve como objetivo “adequar a regulação de justiça administrativa às opções constitucionais de plena jurisdicionalização e de proteção jurídica subjectiva (...)” – Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (2009). P.197

[3] Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral (2004), p.39

[4] José Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: Lições (2015), p.15

[5] Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Actos de Governo (1948), p. 534.

[6] Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo (1984), p.314 e ss.

[7] Marco Caldeira, Actos Políticos, Direitos Fundamentais e Constituição (2014), p.70.

[8] Marco Caldeira, Actos Políticos ..., op.cit., p.69

[9] Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Actos ..., op.cit., p.567.

[10] José Vieira de Andrade, A Justiça ..., op. cit., p.14

[11] Carlos Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional: As funções do Estado e o Poder Legislativo no Ordenamento Português, Tomo I (2012), p.32 e ss.

[12] É de realçar que BLANCO DE MORAIS considera a função legislativa a mais importante atividade política e, portanto, faz uma destrinça entre função política lato sensu e stricto sensu: a segunda é a função política propriamente dita – aquela que emana normas de função política – e a primeira integra a função política stricto sensu e a função legislativa.

[13] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo (2016), p.184 e ss.

[14] Diogo Freitas de Amaral, Direito Administrativo, vol. I (1986), p.41

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