sábado, 26 de novembro de 2016

A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO ÂMBITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

            I. O Ministério Público é hoje, um órgão de justiça independente e autónomo, com estatuto próprio, Estatuto do Ministério Público (EMP). Teve ao longo da história diversas funções, tendo sido representante do rei, órgão dos tribunais mas dependente do Governo e ainda magistrados independentes e autónomos.[1]

            II. Segundo o art. 51 do ETAF o Ministério Público desempenha três funções enquanto magistratura autónoma do Estado. Tem como funções a representação do Estado, por exemplo, a 2ª parte do nº1 do art. 11º do CPTA, defender a legalidade democrática e ainda a função de promover a realização do interesse público.
            Este intervém no processo, segundo o art. 85º do CPTA, que dispõe no seu nº 2 que o Ministério Público pode pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos de especial relevância ou em algum dos casos do nº2 do art. 9º do CPTA. Segundo o nº 3 do art. 85º CPTA, nos processos impugnatórios, o Ministério Público pode invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na petição inicial e solicitar a realização de diligências instrutórias para a respetiva prova. O art. 9º do CPTA concede-lhe legitimidade ativa para propor e intervir nos termos previstos na lei (art. 291º da CRP; art. 3º e 5º do Estatuto do Ministério Público e art. 51 ETAF e, outro exemplo, art. 16º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto sobre o direito de participação procedimental e ação popular), em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, ambiente, urbanismo… assim como para promover a execução das decisões que possam surgir desses processos.

            III. Pode intervir como parte principal ou acessória. Segundo nº1 do art 5º do EMP e o nº 1 do art 62º CPTA, o Ministério Público pode, no exercício da ação pública, assumir a posição de parte principal quando propõe ações de defesa da legalidade, impugna decisões administrativas ou normas regulamentares (al. b) do nº1 do art 55º do CPTA) da Administração Pública. Intervém ainda em sede de recurso das decisões proferidas em 1ª instância. Nos casos em que intervém como parte acessória (nº4 do art. 5º e art.6º do EMP), o Ministério Público emite pareces e interpõe recursos jurisdicionais em prol da defesa da legalidade nomeadamente em matéria de custas ou questões em que estejam em causa interesses ou valores que sejam da sua obrigação tutelar (nº 2 do art 9º, nº 1 do art 146º e nº 1 do art 155º do CPTA). Mesmo quando não é parte no processo, o MP, como órgão de justiça, intervém sempre que estejam em causa bens, interesses ou valores cuja defesa tem o particular poder/dever de assegurar.[2]

IV. Como supra foi referido, o Ministério Público tem tripla função[3] no contencioso administrativo:
A)     Segundo art 51º ETAF, nº 1 do art.219º da CRP e art.1º do EMP, é o titular da ação pública do contencioso administrativo ou seja, função de defesa da legalidade democrática, al.b) do nº1 do art 55º CPTA e art 51º do ETAF. Este princípio concretiza-se numa função garantística dos interesses e direitos legalmente protegidos dos cidadãos perante a administração.[4] É possível dizer-se que a defesa da legalidade democrática atribuída pela Constituição deve ser entendida como um dever de fiscalização dos atos e comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos, ancorando-se sempre nos princípios da juridicidade e legalidade, por outra palavras, o interesse públicos que o Ministério Público prossegue é o interesse público na repressão da violação destes princípios.[5]
B)    Função de representar o Estado como dispõe o art. 1º, a al.a) do nº1 do art 3º e  art 4º e nº 1 do art 5º do EMP e o  nº 1 do art. 291º da CRP, art. 51º ETAF e art 11º do CPTA, nas ações administrativas as partes devem estar representadas por advogado (…) e o Estado pelo Ministério Público. Sobre a questão de se o Ministério Público também representará as Regiões Autónomas e as autarquias locais, parecem responder afirmativamente os nº1 do art 3º e nº1 do art 5º do EMP, mas negativamente o ETAF e o CPTA. Dispõe o art 5º que o  Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando, al.b) representa as Regiões Autónomas e as autarquias locais. Porém o nº2 deste mesmo artigo estabelece que, em caso de representação de região autónoma ou de autarquia local, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio. SÈRVULO CORREIA aoi debruçar-se sobre esta questão conclui que apesar da representação do Estado ser obrigatória para O ministério Público, no caso das autarquias locais  e das Regiões autónomas, a respetiva representação pode ser afastada por vontade dos seus órgãos desde logo pela simples constituição de mandatário próprio como dispõe o nº2 do art 5 do EMP.[6]
C)    Tem ainda função de interveniente processual, por outras palavras,  independentemente de ser autor ou representante do Estado pode intervir nos processos, sempre no âmbito da defesa do interesse público como dispõem os art. 1º do EMP, art 51º do ETAF e nº 1 do art. 62º, art. 85º, nº1 do art. 141º sobre a legitimidade de interpor recurso que considere violadora de disposições ou princípios legais ou constitucionais e nº 1 do art. 155º todos do CPTA. No nº 1 do art. 62º verifica-se a hipótese em que o autor não avança com a ação e o Ministério Público avança com ela (tem legitimidade pela al. b) do nº1 do art 55º CPTA), em geral, em relação a qualquer ação nos termos do nº3 art 85º o Ministério Público recebe cópia da petição e assim este poderá pronunciar-se sobre o mérito da causa ou sobre interesses públicos relevantes, pode identificar causas de invalidades diversas das do autor ou solicitar a diligências instrutórias para a respetiva prova. Funciona assim como uma espécie de auxiliar público. O Ministério Público, hoje, é sempre citado para casos em que queira dar parecer (antigamente visto prévio do Ministério Público), se lhe interessar diz de sua justiça no âmbito da tutela da legalidade no âmbito dos direitos e interesses exemplicados no nº2 do art 9º CPTA e 51 do ETAF. Este parecer não é vinculante para o Tribunal. Nesta terceira função verifica-se que o Ministério Público não é aqui nem autor nem réu, funciona sim como um ajudante do Tribunal, como amicus curiae[7], na medida em é um terceiro imparcial que visa contribuir para um melhor funcionamento da aplicação do Direito.[8]

V. É de sublinhar que, tal como nos demonstra o nº 2 do art 85º CPTA o Ministério Público tem o dever de pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa de interesses e valores constitucionalmente protegidos no âmbito do nº2 do art 9º CPTA. Ora, conclui-se assim que, apesar de todas as funções supra descritas, o Ministério Público não pode intervir para se pronunciar sobre questões de legalidade processual, isto é, não pode suscitar regularizações das petições iniciais, exceções, nulidades ou quaisquer outras questões de semelhante natureza que não tenham sido questionadas. Assim, não pode aconselhar por exemplo, a decisão de absolvição da instância, que não se pronuncie sobre o mérito da causa e mesmo isto, só quando estejam preenchidos os requisitos do nº 2 do art 85º CPTA.[9]

VI. A intervenção do Ministério Público contribuirá sempre para a elucidação contraditória do conteúdo da controvérsia, promovendo a concretização da legalidade substantiva e assegurando a paz jurídica.[10]




BIBLIOGRAFIA:

 ALMEIDA, Mario Arouso de, Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2016.

CORREIA, José Manuel Sérvulo, “A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 295-329

CORREIA, José Manuel Sérvulo, “A representação das pessoas coletivas públicas na arbitragem administrativa”, in Separata de Estudos de Direito da Arbitragem em Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, disponível em: http://www.servulo.com/xms/files/publicacoes/Livros_2015/Correia__A_Representacao_das_Pessoas_Coletivas_Publicas_na_Arbitragem_Administrativa_2015.pdf

MOREIRA, Vital; CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol.II- art.219º, Coimbra Editora, pp’s 599-607.

SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos “O Ministério Público no atual contencioso Administrativo Português”, E-Pública, Revista Electrónica de Direito Público, Número 7 de 2016, pág 165-183.

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divâ da Pscianálise, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2009.

Sites Consultados:



COMENTÁRIO REALIZADO POR:
ANA ISABEL GOMES DOMINGOS
Nº24471




[1] Vital MOREIRA, José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição da República Portuguesa, Anotada Vol.II- art.219º, Coimbra Editora, p. 601.
[2]O Ministério Público, disponível em http://www.ministeriopublico.pt/pagina/area-administrativa, consultado no dia 19/11/2016.
[3] Tem também uma quarta função de execução da ação penal, segundo o nº1 do art. 219º da CRP e art. 1º do EMP, mas que para o caso em concreto não é chamada à colação uma vez que o comentário versa sobre o Ministério Público no âmbito do contencioso Administrativo e respetiva intervenção.
[4] José Manuel Sérvulo CORREIA, “ A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público”, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 306.
[5] Cláudia Alexandra dos Santos SILVA, “O Ministério Público no atual contencioso Administrativo Português”, E-Pública, Revista Electrónica de Direito Público, Número 7 de 2016, p.171.
[6] José Manuel Sérvulo, CORREIA, “A representação das pessoas coletivas públicas na arbitragem administrativa”, in Separata de Estudos de Direito da Arbitragem em Homenagem a Mário Raposo, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, disponível em: http://www.servulo.com/xms/files/publicacoes/Livros_2015/Correia__A_Representacao_das_Pessoas_Coletivas_Publicas_na_Arbitragem_Administrativa_2015.pdf

[7] Cláudia Alexandra dos Santos SILVA, “O Ministério Público…, p.179.
[8] José Manuel Sérvulo CORREIA, A reforma do… op.cit, p.309.
[9] Vasco Pereira da SILVA, O Contencioso Administrativo no Divâ da Pscianálise, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2009, p.352.
[10] José Manuel Sérvulo Correia, A reforma do… op.cit, p.318

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO DE 19 / 6 / 1990

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACÓRDÃO DE 19 / 6 / 1990 — PROCESSO C-213/89 [1]


The Queen e Secretary of State for Transport, ex parte: Factortame Ltd e outros



I- Introdução

A edificação da União Europeia e a necessária integração levou a que os estados implementassem reformas para se adaptarem às exigências do Direito da União Europeia, bem como às constantes transformações. Este fenómeno levou a uma europeização das Constituições dos estados membros, [2] tendo sido de tal forma relevante que existem hoje autores a admitir a existência de um verdadeiro Direito Constitucional Europeu concretizado. [3] É nestes termos que o processo de integração operou alterações profundas no seio dos Estados membros, surgindo um Direito Administrativo Europeu ou um “novo” [4] Processo Administrativo Europeu, levando a importantes reformas do Contencioso Administrativo. Pode por isso concluir-se que o processo de integração europeia levou a que no caso Português o Contencioso Administrativo fosse influenciado e moldado pelo Direito da União Europeia. O Professor Vasco Pereira da Silva diz mesmo que “a “integração” das fontes e das instituições administrativas europeias e dos Estados-membros, origina uma «progressiva comunitarização dos modelos administrativos nacionais» ” [5]. Após estas conclusões não será obviamente difícil concluir que muitas das transformações operadas se deram por via de jurisprudência do Tribunal de Justiça. Assim alguns Princípios Fundamentais hoje assentes na ordem jurídica europeia tiveram a sua “afirmação” no espectro lançado pelo Tribunal de Justiça. Hoje grande parte destes princípios tem consagração legislativa.          
É hoje dado como assente que o Direito Administrativo Europeu, assenta necessariamente na garantia de uma tutela jurisdicional efetiva, podendo-se daqui retirar o direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, o direito de obter uma decisão judicial em prazo razoável e equitativo bem como o direito à efetividade das sentenças.      
A necessidade da garantia da tutela jurisdicional efetiva não obriga somente as instituições da União Europeia, mas também, as instâncias nacionais dos estados membros, por exigência dos princípios do primado e da tutela jurisdicional efetiva. É necessário garantir que as pretensões dos particulares decorrentes do Direito da União sejam salvaguardadas, podendo ser concedidas providências cautelares. É neste ponto que o Acórdão do Tribunal de Justiça, Factortame, emprega toda a sua relevância, pois discutiu-se a possibilidade de os órgãos jurisdicionais nos ordenamentos jurídicos internos concederem uma providência cautelar para proteger direitos conferidos pelo Direito da União Europeia. 


         II- Acórdão Factortame


Levantava-se no Acórdão um problema com uma alteração legislativa no Reino Unido relativa ao registo de navios nos termos da qual alguns dos navios de que as requerentes eram proprietárias iam ficar privados do direito de pescar. 
Assim, solicitaram ao High Court of Justice, a compatibilidade dessa lei com o direito da União Europeia e, até ser proferida a decisão definitiva, requereram a tutela providência cautelar. 
Na sua decisão, a Divisional Court decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça um pedido prejudicial sobre as questões de Direito da União e ordenou, a título cautelar, a suspensão da lei em causa relativamente às recorrentes. Em sede de recurso, a Court of Appeal considerou que, nos termos do direito interno britânico, os órgãos jurisdicionais não tinham o poder de suspender provisoriamente a aplicação das leis e, em consequência, anulou a decisão da Divisional Court
Em resposta, o Tribunal de Justiça lembrou que já no seu Acórdão Simmenthal [6] tinha afirmado o princípio da efetividade do Direito da União, pelo qual as autoridades nacionais têm que garantir o efeito útil das disposições europeias desde a sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade. Na decisão o Tribunal deixou claro: “O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.”



III- Conclusões

O Acórdão Factortame é um marco obrigatório no quadro dos princípios de Direito da União Europeia. Da fundamentação do Acórdão facilmente se conclui que ali se reafirmam os princípios do primado, mediante o qual a aplicação do direito nacional que seja incompatível com o Direito da União deve ser afastada e, consequentemente, reparados os danos que a sua aplicação provocou, e da efetividade, que impõe que os Estados-Membros devem garantir o efeito útil e a plena aplicação do direito da União Europeia. Assim, neste Acórdão, o Tribunal de Justiça firma a ideia de que, se uma norma interna não consagrar a possibilidade de o juiz nacional decretar uma providência cautelar num caso concreto, o juiz deve desaplicar essa norma e assegurar a aplicação do Direito da União Europeia, garantindo a tutela jurisdicional efetiva. 
A jurisprudência seguida neste Acórdão foi depois reafirmada no Acórdão Zuckerfabrik, Atlanta, e no Acórdão Unibet 2007, onde, mais se defendeu que a concessão das providências cautelares para tutelar danos irreparáveis nos direitos dos particulares decorrentes do Direito da União Europeia.


João Martinho Marques



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[2] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina.      

[3] ROQUE, Miguel Prata, O Direito Administrativo Europeu, pág. 950 e ss

[4] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina, pág. 107       

[5] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª Edição, 2016, Coimbra, Almedina, pág. 111



terça-feira, 15 de novembro de 2016

A ação de condenação à pratica de ato devido.


Após as revisões constitucionais que obrigaram à “psicanálise” do Contencioso Administrativo, e que permitiram finalmente que os particulares vissem os seus direitos assegurados quando se relacionavam com a administração, surge no Contencioso Administrativo a figura das ações de condenação à prática de ato devido. Ora a premissa deste comentário é exatamente esta: as revisões constitucionais criaram, especialmente para o Contencioso Administrativo, uma mudança extremamente necessária, que permitiu o derrube de muitos dos traumas de infância que pesavam sobre o Direito Administrativo, e que culminaram com a criação, em 1997, da ação de condenação à prática de atos devidos por parte da Administração Publica.

 Enquanto modalidade de ação administrativa especial, a ação de condenação à prática de ato devido está prevista nos artigos 66º e seguintes do CPTA e vem contradizer toda a historia do Direito Administrativo no que se refere à linha ténue que separava o poder do tribunal de impedir a produção de efeitos de certos atos, do poder do tribunal de “forçar a mão” da Administração na pratica de atos distintos, sendo sempre invocado, apesar de desnecessariamente, como fundamento para impedir que o Tribunal condenasse a Administração o principio da separação de poderes[1]. Contudo, os Tribunais nunca invadiriam esfera jurídica alheia ao ordenar a Administração à pratica de determinado ato que tivesse como propósito a salvaguarda de um interesse real de um particular lesado, pelo que a interferência dos Tribunais nesta relação jurídica administrativa é, claramente, a solução mais adequada para reagir a uma lesão decorrente uma atuação, ou omissão, da Administração. Contudo, só com a interferência legislativa de 1997, por força da revisão constitucional, é que este novo meio processual se torna uma realidade, e nasce o artigo 66º do CPTA, e com ele duas novas modalidades de atuação nesta figura jurídica integrantes: a primeira consiste na condenação da Administração à emissão do ato jurídico devido; a segunda permite a condenação da Administração à prática de um ato mais favorável ao particular, com o intuito de substituir um ato desfavorável previamente praticado. 
 Ou seja, este novo meio processual tem um âmbito extremamente favorável para os particulares, por abranger tanto atos desfavoráveis já praticados como a omissão de atos a praticar pela Administração. O próprio artigo 66º, nº2 vem revelar uma enorme preocupação com a pretensão do interessado, sobrepondo-a ao ato administrativo em matéria de objeto processual, ou seja, a norma vem dizer-nos que o que visa proteger é, exatamente, o direito do particular a um determinado comportamento da Administração, pelo que o ato em si é esvaziado de toda a sua autonomia visto que a preocupação primária é a lesão a um direito subjetivo de um particular. Esta ideia de preocupação com o particular não se esgota no artigo 66º, estando ainda patente no artigo 71º, nº1, que revela a maior incidência na relação jurídica entre o particular e a Administração, determinando qual a tutela que o lesado merece e que atuação é devida por parte da Administração, independentemente da existência de um ato administrativo em concreto. Ou seja, o Tribunal passa a avaliar toda a relação controvertida para determinar os direitos e deveres das partes, tendo na sentença o poder de impor à parte que está “em falta” a atuação que a mesma deveria ter prosseguido. Identificamos, portanto, a existência de um leque de requisitos, sem os quais a ação não pode ser proposta, a saber: a existência de uma omissão de decisão, ou prática de ato administrativo de conteúdo negativo, como retiramos do artigo 67º; a legitimidade das partes, que vem regulada no 68º; e a oportunidade do pedido, prevista no artigo 66º. Ora estes três pressupostos, de forma muita sintética, vêm indicar que, para ser possível intentar uma ação de condenação a ato devido é necessário que a Administração ou nada tenha feito[2], ou tenha atuado em sentido desfavorável, que as partes com legitimidade para intentar a ação sejam as elencadas pelo artigo 68º, e que, consoante se esteja perante uma omissão ou ato de conteúdo negativo, que a mesma seja intentada dentro do prazo de 1 ano ou 3 meses, respetivamente.

 Podemos então referir esta nova forma de resolução de controvérsias levanta uma questão interessante: até que ponto pode o Tribunal Administrativo decidir no lugar da Administração, partindo desde já da premissa que o pode, efetivamente, fazer? Até agora ficou claramente estabelecido que os Tribunais podem emitir sentenças através das quais condenem a entidade competente à prática de determinado ato que a mesma omitiu ou se recusou ilegalmente[3]. Contudo, esta ideia base não reflete qual o papel que, em concreto, estas sentenças têm no que importa à discricionariedade das decisões administrativas, que só às entidades administrativas competentes têm respeito. Ou seja, poderá o Tribunal vincular a Administração à prática de um ato em concreto, ou resumir-se-ão as suas decisões à criação de balizas dentro das quais a entidade competente terá que se pronunciar? O artigo 3º, nº1 parece indicar que as decisões dos Tribunais Administrativos só podem incidir sobre a legalidade da atuação, não podendo fazer uma apreciação do mérito da mesma. E mais, o artigo 71º, nº2 do CPTA vem esclarecer que o Tribunal, caso não determine uma solução única aos olhos da lei, não pode determinar o conteúdo do ato, podendo apenas “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.” Contudo, o nº1 deste mesmo artigo vem afirmar que o Tribunal deve apreciar a questão até ao fim, ou seja, deve pronunciar-se sobre a pretensão material do interessado e impor a pratica do ato devido em concreto, desde que não interfiram com a margem de discricionariedade que é própria da Administração Publica, ou seja, que não decidam à luz de juízos que só a Administração é capaz de fazer.

 Posto isto, existem duas diferentes modalidades de sentença: a primeira consiste na sentença que impõe à Administração a prática de um ato de conteúdo determinado, ou seja, impõe a prática de um ato em concreto, por exemplo, impõe à Administração a atribuição de uma licença a um particular;  a segunda consiste na imposição à Administração que pratique um ato de conteúdo indeterminado, na qual o tribunal baliza as vinculações legais que a Administração tem que cumprir, mas deixa na tal esfera de discricionariedade a decisão em concreto, ou o ato em concreto, sentenças essas apelidadas pela doutrina de sentenças indiciativas, com previsão no artigo 71º, nº2. Da interpretação deste artigo retiramos também, “a contrario”, que sempre que a solução for, aos olhos da lei, apenas uma, que o Tribunal pode determinar o conteúdo do ato, interpretação esta que fundamenta a primeira modalidade de sentença referida neste paragrafo. Portanto, o que o artigo 71º vem fazer, de forma extremamente correta, é determinar até onde pode o Tribunal ir na sua condenação. Contudo, e o ponto que me parece mais curioso no estudo dos efeitos das sentenças neste tipo de ação, é exatamente aquele que nos é avançado pelo artigo 3º, nº4 do CPTA, que passo a citar:


"Artigo 3º
Poderes dos tribunais administrativos
(…)
4- Os tribunais administrativos asseguram ainda a execução das suas sentenças, designadamente daquelas que proferem contra a administração, seja através da emissão de sentença que produza os efeitos do ato administrativo devido, quando a pratica e o conteúdo deste ato sejam estritamente vinculados, seja providenciando a concretização material do que foi determinado na sentença."


 Ora cabe em primeiro lugar fazer uma menção ao artigo 268º, nº4 da CRP, que nos vem claramente dizer que os administrados têm direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que passa pela determinação à pratica de atos legalmente devidos. Posto isto, a minha interpretação referente a este artigo passa pela ideia de que, em casos que a Administração tivesse que atuar e não o fez, e a solução legal é uma só, nada obsta a que a sentença seja tida como titulo executivo e valha, no nosso ordenamento jurídico, como ato administrativo devido. O que significa que sempre que a sentença avalie a relação controvertida e chegue à conclusão que existe uma solução individual e concreta, esta pode fazer-se substituir à entidade administrativa e consequentemente, praticar o ato administrativo que deveria ter sido praticado dentro de determinado prazo e não foi. O que significa que sempre que determinemos que um ato, para ser praticado, recai ainda dentro da tal esfera de discricionariedade aqui exaustivamente mencionada, que a sentença não poderá produzir estes efeitos sob risco de violar o principio da separação de poderes.

 Deste modo se ultrapassaram muitos dos traumas de infância do contencioso administrativo, principalmente através da atribuição de um papel muito mais ativo dos tribunais administrativos, que deixam de ter apenas o poder de suspender a eficácia de atos ilegais, e passam a poder criar, eles próprios, e quando requeridos pelos administrados, sentenças com valor de ato administrativo para as situações em que um ato deveria ter sido criado e não foi, demonstrando uma maior preocupação por parte do contencioso administrativo pela salvaguarda dos interesses do particular, que vê agora nos tribunais administrativos um mecanismo de combate à inércia da Administração Publica.



Mariana Honório Nº24418



[1] A “santidade” deste principio é evidenciada pela referência utilizada pelo Professor Doutor Vasco Pereira da Silva no seu manual, no qual o apelida de “sacrossanto”. in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ob. Cit. pág. 378
[2] Neste caso de omissão, o que acontecia é que se ficcionava um indeferimento tácito do pedido do particular, a fim de permitir a sua impugnação. Com a criação das ações de condenação, esta ficção torna-se irrelevante pois permite ao particular exigir da Administração o ato que ela devia ter praticado atempadamente.
[3] Artigo 66º, nº1: “A ação administrativa pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado.”

sábado, 12 de novembro de 2016

PROVIDÊNCIAS CAUTELARES NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO:

As providências cautelares antes da reforma eram utilizadas apenas para os casos de suspensão de eficácia do ato, pois esta era a única prevista no CPTA.
O objeto das providências cautelares também era bastante restrito visto que só abrangia atos administrativos com efeitos positivos e conservatórios.

A Revisão Constitucional de 1997 à CRP veio alterar o art. 268º/4 esclarecendo que as providências cautelares ocorriam com o objetivo de evitar factos consumados em situações irreversíveis, esta alteração quase que exigiu na Reforma de 2004 a ampliação do âmbito de aplicação das providências cautelares.

A partir da Reforma de 2004 os particulares e a administração puderam ter acesso a um elenco de providências cautelares muito mais vasto, acrescentando às providências cautelares com efeitos conservatórios (asseguram a eficácia e o efeito útil da decisão que vai ser proferida no processo principal) também efeitos conservatórios (antecipam aquilo que obteria em principio pela ação principal) - com o objetivo de prevenir futuros danos.

Para além desta alteração, foi também estipulada uma cláusula aberta (112º/1 CPTA), dando ainda mais possibilidades de formas de providências cautelares sem estarem especificadas na lei mas que se revelassem adequadas.
Atualmente as providências cautelares estabelecidas para o procedimento civil poderão ser adotadas pelos tribunais administrativos (112º/2 CPTA – cláusulas não taxativas). Sendo essas formas as Providências de Garantia (arresto, arrolamento), as Providências de Regulação (restituição provisória da posse, embargo de obra nova, suspensão de deliberações sociais) e as Providências de Antecipação (alimentos provisórios, arbitragem de reparação).

Com a Reforma de 2004 houve uma lacuna que ficou suprimida pois havia ausência de instrumentos adequados a garantir a tutela efetiva, agora o principio já se encontra completamente tutelado protegendo assim cada vez mais os particulares.

Passando um pouco a Reforma à frente e falando mais sobre os princípios pelos quais as providências cautelares se regem, a saber: o principio da tutela jurisdicional efetiva, o principio da separação de poderes e o principio da prossecução do interesse público.
O principio da tutela jurisdicional efetiva (268º/4 CRP) consiste no facto de ter em conta os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos perante quaisquer atuações ilícitas da administração.
O principio da separação de poderes consiste no facto dos tribunais poderem condenar a administração na adoção ou abstenção de condutas (desde que o núcleo essencial da função administrativa não seja afetado).
O principio da prossecução do interesse publico consiste no facto da providência cautelar dever ser ponderada entre o principio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e o principio do interesse público.

As providências cautelares têm três caraterísticas: a instrumentalidade, a provisoriedade e a sumaridade.

A instrumentalidade versa sobre a não demora do processo e diferença entre o tempo de demora da decisão sobre o mérito das providências cautelares e da ação principal. Assim pode conseguir-se no titulo provisório aquilo que se conseguiria no processo principal satisfazendo-se provisoriamente os interesses que resultam da relação material controvertida. A partir do momento em que deixa de haver um perigo a providência cautelar esgota o seu efeito útil.

A provisoriedade resulta da decisão provisória e transitória que irá caducar com a execução da decisão principal. Os efeitos da decisão providencial têm limites temporais e não podem formar caso julgado. Há apenas um grau de probabilidade de existência de um direito lesado, não existe grau de certeza e por isso é que a decisão proferida é provisória, porque a decisão definitiva só será conseguida na ação principal.

A sumaridade refere-se ao caráter urgente das providências cautelares pois a utilização das providências cautelares provém da necessidade de urgência, havendo assim uma apreciação sumária dos factos apresentados. Servem para os casos em que se não houver rapidamente uma decisão (o que não é o caso das decisões da ação principal) irão haver danos que não se conseguiram reparar ou evitar. Esta visa então evitar a consumação da lesão.

Para as providências cautelares existirem três requisitos terão que estar preenchidos: a perigosidade, a juridicidade material e a proporcionalidade.

A perigosidade (“periculum in mora” ou “perigo inerente ao tempo de tramitação da ação principal “) é referida no art.120º do CPTA na referência à “produção de prejuízos de difícil reparação” , ou seja, a providência cautelar é proposta quando haja um dano iminente e irreparável (que tem que ser provado pelo requerente).
No entanto e segundo o artigo 120º/1/A do CPTA o requisito da perigosidade não é exigido se for evidente a procedência da pretensão formulada.

A juridicidade material (“fumus boni iuris”) é referida no art.112º/1 no sentido em que as providência cautelares têm como objetivo assegurar a utilidade da sentença a proferir na ação principal e o objetivo de antecipar a decisão a proferir nessa ação.

A proporcionalidade exige que sejam ponderados todos os interesses através de um juízo de prognose, ou seja, a providência cautelar não se pode tornar num prejuízo superior aos danos já existentes para o requerido. Portanto tem que existir um equilíbrio entre os interesses em causa e os danos que poderão resultar se for concedida a providência.
Este requisito tem que estar preenchido principalmente dentro das suas duas vertentes: a necessidade (porque as providências cautelares devem acautelar apenas o necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos – 120º/2 CPTA) e a adequação (porque as providências cautelares devem ser adequadas ao caso concreto)

Estes três requisitos devem estar preenchidos cumulativamente para que se possa realizar verdadeiramente uma providência cautelar (114º/3 e 4 do CPTA). Se houver falta de qualquer um desses requisitos a parte é convidada a suprir essas faltas.

As providências cautelares podem ser instauradas antes da ação principal, com a petição inicial ou na pendência da ação principal (114º/1 CPTA)

Quando seja requerido suspensão da eficácia de um ato administrativo a citação tem o objetivo de proibir o prosseguimento da execução do ato impugnado (128º/1 CPTA).
Nesse caso a entidade administrativa que queira prosseguir com essa execução do ato pode proferir resolução fundamentada justificando que o deferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público (ponderação entre interesses e direitos do particulares com interesse público).

A providência não caduca se a ação principal não for proposta em 30 dias depois da decisão cautelar como é o caso no Processo Civil (389º CPC), mas sim ao fim de 3 meses (123º/2 CPTA).



Marta David
ST9 nº24457

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Ação popular no contencioso administrativo
1-Conceito
Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e as fundações defensoras dos interesses em causa, tem legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos (artigo 9º do CPTA).[i] Esta figura consiste numa ação judicial que surge como expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais (artigo 52º/3 C.R.P). No entendimento do Senhor Professor Paulo Otero, a ação popular distingue-se das demais modalidades de ações pela amplitude que o CPTA lhe atribui, nos critérios que configuram a legitimidade para a respectiva propositura.[ii]

2-Contexto Histórico
De acordo com o modelo francês, o contencioso administrativo era de natureza tipicamente objetiva: destinava-se à mera verificação da legalidade do acto administrativo. Assim, nem a Administração, nem o particular eram considerados como partes. A sua presença perante o Tribunal destinava-se apenas à colaboração com este para prossecução da legalidade e do interesse público. Desta forma, não era reconhecida qualquer relação de conteúdo substantivo que permitisse actuar para a defesa de direitos ou interesses próprios, não se admitindo a existência de uma relação jurídica entre eles.
Na corrente da conceção clássica do Direito Administrativo, o particular não era um sujeito, mas sim um “administrado”, cuja posição no processo não se traduzia numa posição verdadeiramente material por se ver representado pelo Ministério Público. Ora, a qualidade de parte no contencioso era negada pelo dogma administrativo preocupado com os privilégios autoritários.”[iii]
Com isto, apesar da Constituição de 1976 ter autonomizado o papel do indivíduo nas relações administrativas e, mais adiante, com a reforma de 1984/1985 ter incrementado várias medidas no sentido da transformação do contencioso administrativo num processo de partes, existiam ainda disposições limitativas de intervenção processual.
Não só o particular tinha o estatuto de parte negado na doutrina clássica, como a Administração via a sua posição reduzida a mero auxiliar do Tribunal na tarefa de estabelecimento da legalidade e do interesse público. Tais laços entre a Administração e a Justiça foram cortados, de facto, pela Constituição de 1976, que integrou o Contencioso Administrativo no Poder Judicial .
Posteriormente, a Lei 93/95, de 31 de Agosto, implementou o imperativo constitucional que reconheceu a ação popular como um direito fundamental, conducente ao necessário desenvolvimento legislativo a respeito.
Atualmente, assumindo o sistema uma posição subjetivista, é claro o principio da igualdade efectiva das partes (artigo 6º do CPTA) atinente à legitimidade processual dos particulares e da Administração. Respectivamente, quanto aos primeiros, está em causa a afirmação da lesão de um direito, e no respeitante aos segundos, a defesa da legalidade e do interesse público.
Enquanto que, de acordo com os parâmetros clássicos, era a legitimidade que constituía o critério de acesso ao juiz, legitimidade essa que era determinada de acordo com o interesse ( directo, pessoal e legítimo)[iv]; no novo regime jurídico estabelecido pelo CPTA, os cânones de determinação da legitimidade decorrem da alegação da posição controvertida (artigos 9º e seguintes). Ora, a razão que fundamenta a legitimidade, está na posição dos sujeitos e na alegação de direitos e deveres recíprocos na relação jurídica substantiva. 
Nesta medida, como refere Vasco Pereira da Silva, para a determinação de posições substantivas de vantagem no âmbito da relação jurídica administrativa, “basta a alegação plausível, pelo autor, da titularidade da posição jurídica subjetiva respectiva, pois, saber se ele é ou não titular do direito é algo que pertence ao fundo da causa.”[v] Nesta corrente de pensamento, o autor considera que não se justifica a distinção clássica entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. O autor defende que todas as posições substantivas de vantagem dos privados perante a Administração devem ser entendidas como direitos subjectivos.
Atendendo à distinção feita por  Teixeira de Sousa,- “os interesses difusos só são delimitáveis em função das necessidades concretamente satisfeitas aos membros de uma coletividade: como esses interesses se desdobram numa dimensão individual e numa dimensão supra-individual, não há interesses difusos que não satisfaçam efectivamente uma necessidade de todos e de cada um dos membros de uma coletividade”[vi]-, ajuda-nos a obter uma melhor compreensão quanto ao entendimento, supra referido, de Vasco Pereira da Silva, visto que, o fenómeno de extensão da legitimidade, por via da ação popular, reflete a Teoria da  Norma Proteção, que visa a titularidade de um direito subjectivo em relação à Administração sempre que de uma norma jurídica se extraia, para além da satisfação do interesse público, a proteção dos interesses dos particulares, resultando daí, uma vantagem objectiva ou um mero benefício de facto decorrente de um direito fundamental. 

Helena Lopes Semedo, nro 22215.







[i] In, Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte.
[ii] PAULO OTERO, A  Ação Popular: configuração e valor no atual Direito português , p.871 e 872
[iii] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Diva da Psicanalise, Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo,  ob. Cit p.256.

[v] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Diva da Psicanalise, Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo,  ob. Cit p.263.


[vi] TEIXEIRA DE SOUSA, A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos,p.32

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Questões em torno de relações jurídicas administrativas no âmbito dos registos e notariado

A questão a que me proponho justifica da minha parte sobretudo o seu enquadramento mais do que o ensaio de uma resposta minimamente definitiva que só uma investigação de maior porte permitiria. Trata-se de saber qual a jurisdição e qual o direito processual próprios para dirimir litígios entre os cidadãos e um setor da administração pública a que genericamente se reconhece uma função de publicidade: as conservatórias e o notariado.
Refiro-me concretamente a atos notariais e a atos no âmbito do Registo Civil, do Registo Predial, do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, do Registo Comercial, entre outros.
Atente-se que nos referimos aos atos praticados pelos notários e conservadores e não aos atos praticados pelos particulares que a lei submete a estas exigências de publicidade. É que, quanto aos primeiros, não podemos deixar de nos questionar: serão atos administrativos, inseridos em relações jurídicas administrativas ou, ao invés, atos de outra natureza inseridos em relações jurídico-privadas? E a que jurisdição deverão ser submetidos os litígios emergentes da pratica desses atos, comum ou administrativa?
Na verdade, estes são atos praticados no exercício da função administrativa, constituem relações jurídico-administrativas entre os cidadãos e o Estado, podem ser lesivos dos seus direitos e interesses particulares, mas são os tribunais comuns a deter a competência para conhecer da sua impugnação[1].
Para responder a estas questões será necessário tecer breves considerações acerca deste tipo de atos.
Em primeiro lugar, os atos registrais e notariais são praticados por autoridades públicas satisfazendo uma necessidade coletiva de certeza e segurança jurídica. Trata-se de situações jurídicas que, devido à sua importância económica ou social, precisam de maiores garantias jurídicas formais e de publicidade oficial. O conservador ou o notário não se limitam a desempenhar o papel de arquivistas ou de testemunhas qualificadas. Exercem verdadeiros poderes públicos de uma forma particularmente visível quando indeferem ou impedem os particulares de alcançar a validade ou a eficácia de certos atos e negócios jurídicos sujeitos a uma solenidade própria ou a formas de publicidade registral.
O objetivo é, aqui, o de garantir a autenticidade e a certeza da situação jurídica. Para tal, a lei podia ter optado por duas vias: ou deixava à iniciativa privada a responsabilidade pela prestação destes serviços ou assumia-a como uma tarefa do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas.
Este último foi sempre o modelo escolhido entre nós – atribuir a entidades públicas as atividades ligadas à fé pública e à garantia de direitos e bens de particulares -, embora recentemente a privatização do notariado apresente traços daquilo que se pode designar como exercício de funções administrativas por privados.
Ao mesmo tempo, devemos atentar no facto de a função exercida por estes órgãos ser uma função administrativa. Desde logo porque, como nos explica o Prof. Mário Esteves de Oliveira, o direito administrativo e a relação jurídica administrativa não existem apenas quando o interesse privado conflitua com o interesse público e prevalece sobre este, mas também quando o interesse público é precisamente o de servir de garante da realização, de modo coletivamente ordenado e organizado, das situações jurídicas dos particulares.
Note-se que não estamos a tratar dos casos de jurisdição voluntária que a lei atribui às conservatórias, nomeadamente, divórcio por mútuo consentimento ou processo de inventário.
É que a questão controvertida está na essência da atividade registral e notarial. As normas destes âmbitos devem ser repartidas entre, por um lado, normas relativas à capacidade, à vontade, à forma e ao conteúdo dos atos e negócios jurídicos de direito privado que são normas de direito privado e, por outro lado, normas que dizem respeito à atuação do oficial público no reconhecimento, registo ou arquivo desses negócios jurídicos, que são normas de direito administrativo (notarial ou registral). Enquanto nas primeiras estão em causa relações jurídicas privadas, as segundas dispõem sobre competência, procedimento e subsistência dos registos efetuados.
Funcionalmente, também é possível apontarmos as diferenças. Enquanto umas pretendem proteger os interesses económicos e pessoais dos particulares, as outras têm como propósito a prossecução do interesse público da certeza do registo: a confiança pública.
A natureza administrativa desta atividade é ainda mais evidente quando chegamos à conclusão de que a aplicação destas normas registrais apenas pode ser feita pela autoridade registral, não podendo o particular dirigir-se aos tribunais para que este decida quais os seus direitos registrais ou para que condene a entidade ao registo.
Em todos os regimes de registo encontramos previsto como meio de defesa dos direitos dos particulares o recurso hierárquico tipicamente administrativo. O lesado recorre dentro da administração pública e só depois pode impugnar um ato lesivo nos tribunais judiciais comuns, ainda quando se trate de um vício relativo à competência do órgão, à preterição de formalidades essenciais ou à violação de princípios gerais de direito público.
Sendo a atividade destes oficiais públicos consiste em aplicar as normas registrais às situações jurídicas que os particulares lhe submetem para o efeito, a coerência do ordenamento jurídico exigiria que os litígios relativos a estas situações jurídicas fossem regulados pelo direito civil, mas que as questões relativas à competência e ao procedimento fossem reguladas pelo direito administrativo e, portanto, submetidas à jurisdição administrativa.
Apesar disto, a verdade é que o legislador preferiu manter a unidade jurisdicional do ato registral, independentemente de estarmos perante litígios relacionados com as situações jurídicas subjacentes ao registo ou relacionados com questões de competência ou procedimento, submetendo todas as questões relacionadas com o registo aos tribunais judiciais.
Mas será que esta solução está de acordo com a nossa Constituição, tendo em conta que desde a 2ª revisão constitucional (1989) os tribunais administrativos e fiscais passaram a beneficiar de uma garantia institucional de existência?
A resposta a esta pergunta prende-se muito com uma questão há já muito debatida na doutrina e na jurisprudência e que é a de saber se o art.º 212/3 da CRP, ao dispor que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” e, portanto, ao estabelecer uma delimitação material da jurisdição administrativa, está ou não a consagrar uma reserva material absoluta de jurisdição em favor dos tribunais administrativos e fiscais.
Ou seja, estabelecendo o legislador constituinte uma reserva absoluta de jurisdição, o legislador ordinário estaria impedido de atribuir aos tribunais judiciais o poder de julgar questões emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais e, no reverso da moeda, não poderia também atribuir aos tribunais administrativos e fiscais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas de outra natureza.
Entendendo-se, pelos motivos acima expostos, que os atos em questão são atos administrativos inseridos em relações administrativas em que temos, por um lado, a pratica de um ato e, no lado contrário, o direito subjetivo à prática desse ato em conformidade com a lei, podemos compreender as consequências de um possível estabelecimento de uma reserva absoluta de jurisdição – a submissão dos litígios emergentes em matéria de registos aos tribunais judiciais seria inconstitucional. Para este entendimento parecem inclinar-se Gomes Canotilho/Vital Moreira[2], considerando que a única exceção à reserva da jurisdição administrativa e fiscal é aquela que a própria constituição estatui: “o contencioso eleitoral (exceto o relativo a órgão de pessoas coletivas de direito público, onde a regra, por força do art.º 4/1 m) do ETAF, é a da subordinação à jurisdição administrativa) que, nos termos do art.º223/2 c) pertence ao Tribunal Constitucional”.
No mesmo sentido aponta Mário esteves de Oliveira[3] focando-se num argumento literal. Com este autor podíamos dizer que nada na letra da lei parece deixar margem para a intermediação da lei ordinária. Parece, à partida, uma norma fechada, sem qualquer ressalva que restrinja a sua aplicação.
Convocando o argumento sistemático e confrontando o art.º 211 e 212 da CRP, podíamos dizer que, se a jurisdição dos tribunais judiciais, fora das matérias cíveis e criminais, só abrange as “áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” e a área administrativa é, logo a seguir, submetida à jurisdição administrativa, então não podem ser entregues aos tribunais judiciais litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Em sentido contrário poderíamos entender com Sérvulo Correia[4] e Vieira de Andrade[5] que o legislador ordinário pode consagrar exceções, desde que com isso não esvazie do âmago essencial a competência dos tribunais administrativos.
Para Vieira de Andrade o art.º 212/3 da CRP não é mais do que “uma regra definidora de um modelo típico, suscetível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caraterizador do modelo.”[6] E prossegue Vieira de Andrade afirmando “em resumo, a interpretação mais razoável do preceito constitucional parece ser a de que visa apenas consagrar os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa. E, como veremos, foi essa a interpretação que esteve na base da reforma legislativa de 2002, que redefiniu o âmbito da jurisdição administrativa em termos que não coincidem inteiramente com a definição substancial da justiça administrativa determinada pela Constituição[7]”.
O Tribunal Constitucional não levantou objeções à impugnação contenciosa de um ato da conservatória do registo predial de Coimbra para os tribunais comuns, considerando que estamos perante uma atividade da administração pública muito próxima do direito privado (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, 1ª secção, de 28/05/2003, Processo nº5/03).
O que parece verdadeiramente surpreendente é a convivência pacífica dos próprios tribunais administrativos com esta orientação (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, 2º Juízo, de 9/05/2013, processo nº05209/09; Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, 1ª Secção de 5/02/2016, Processo nº00236/14.3BEPRT).
Em nosso entender, a última revisão do ETAF e do CPTA[8], ao transpor para a jurisdição administrativa as impugnações judiciais da aplicação de coimas por violação de normas urbanísticas (art.º 4/1 l) do ETAF) e ao deixar intocada a competência dos tribunais comuns em matéria de relações jurídicas administrativas de registos e notariado veio acentuar a incongruência do sistema. Note-se que para as contraordenações era tradicionalmente explicado que havia vantagem na proximidade que só os tribunais comuns estariam em condições de prestar. No entanto, hoje, os tribunais administrativos de 1ª instância apresentam-se bastante mais próximos do que anteriormente.
Por fim[9], há que dizer que o problema não é simplesmente de jurisdição de uns ou de outros tribunais, mas prende-se com as menores garantias que os tribunais comuns prestam aos cidadãos ao aplicarem um conjunto de regras processuais sem lugar para a condenação na prática de ato devido (artigos 66º e seguintes do CPTA) e sem os meios cautelares com que a reforma de 2002 enriqueceu o contencioso administrativo.
A situação mais paradoxal é talvez a do Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas. Prevê-se o recurso hierárquico para o presidente do IRN, IP em alternativa à impugnação judicial direta para os tribunais comuns (art.º 63) e ao mesmo tempo manda-se aplicar subsidiariamente o disposto no Código do Procedimento Administrativo (art.66º). Quer isto dizer que se está a admitir expressamente litígios emergentes de relações jurídicas administrativas fora da jurisdição dos tribunais administrativos, em favor dos tribunais comuns cuja especialização neste domínio é escassa.





[1] Ver, como exemplo, os artigos 286º ss. do Código do Registo Civil, os artigos 117º e ss. do Código do Registo Predial, os artigos 63º e ss. do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, etc.
[2] Constituição da república Portuguesa Anotada, II Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010, pp.565 e ss.
[3] A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas substantivos, contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof. Doutor Rogério Soares, Universidade de Coimbra, 2001, pp. 503 e ss.
[4] A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995.
[5] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98
[6] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016, p.98. O autor regista ser esta também a posição seguida por Sérvulo Correira (A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, p.554)
[7] Ob. Cit., p.100
[8] DL nº214-G/2015 de 2 de outubro
[9] DL 129/98 de 13 de maio

Bibliografia:
A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em Memória do Professor Doutor João Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995.
A publicidade, o notariado e o registo públicos de direitos privados – problemas substantivos, contenciosos e procedimentais, in Estudos em Homenagem aos Prof. Doutor Rogério Soares, Universidade de Coimbra, 2001.
GOMES CANOTILHO, José Joaquim/MOREIRA, Vital, Constituição da república Portuguesa Anotada, II Volume, 4ª edição, Coimbra, 2010
VIEIRA DE ANDRADE, José A Justiça Administrativa: lições, 15ª edição, Coimbra, 2016



                                                                                                              Matilde Folque Ferreira,
                                                                                                                           Aluna nº24098