domingo, 18 de dezembro de 2016

O recurso hierárquico (des)necessário – a infindável divergência doutrinária




O recurso hierárquico como pressuposto da impugnação contenciosa tem vindo a ser uma questão extremamente controversa, acerca da qual não cessam querelas doutrinárias. Na presente dissertação desejamos abordar o conceito do recurso hierárquico, analisar a sua necessariedade ao longo dos tempos, bem como questionar-nos se esta necessariedade deve ou não existir perante normas especiais.
De início, cumpre fazer uma abordagem geral sobre o problema em questão. Na atualidade é possível impugnar os atos administrativos. O regime que regula esta situação está patente nos arts. 51º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado “CPTA”). A dúvida que se coloca é saber se entre os vários pressupostos processuais exigidos para a impugnação contenciosa, a prévia utilização de um recurso hierárquico é um destes pressupostos.
Ora, antigamente, a impugnabilidade do ato administrativo era designada “recorribilidade” e baseava-se numa tripla definitividade: material, vertical e horizontal. De acordo com MARCELLO CAETANO, um ato administrativo materialmente definitivo é um ato que define a situação jurídica própria ou de um terceiro através de uma entidade pública. Dito de outro modo, é um ato consubstanciado numa decisão com eficácia externa.[1] Já a definitividade vertical consubstancia-se numa resolução final da qual não cabe recurso na ordem hierárquica, visto que a decisão foi tomada no exercício de uma competência exclusiva. Trata-se, portanto, de um pressuposto processual que faz depender a impugnação imediata perante tribunais administrativos de um ato administrativo.[2] Finalmente, a definitividade horizontal baseia-se na ideia de que o ato a ser impugnado tem de ser o último ato de todos, ou seja, tem de ser o ato final do procedimento administrativo. Deste modo, todos os outros atos anteriores que fossem meramente preparatórios e tivessem por objetivo levar à existência este ato final, não poderiam vir a ser objeto de recurso contencioso.[3]
Desta forma, a impugnação hierárquica era uma condição genérica de acesso de um ato administrativo ao contencioso administrativo, sendo assim um pressuposto processual.[4] Consecutivamente, só poderiam ser impugnáveis os atos definitivos e executórios.
Um opositor crucial do recurso hierárquico necessário como pressuposto da impugnação contenciosa foi VASCO PEREIRA DA SILVA. Este autor defendia a inconstitucionalidade da impugnação hierárquica com base em quatro argumentos principais. Por um lado considerava que tal estado das coisas viola o princípio da separação entre a Administração e a Justiça, uma vez que preclude o direito de acesso ao tribunal devido à não utilização das garantias administrativas. Por outro lado considerava também que estaríamos perante violação do princípio de desconcentração administrativa, visto que o superior continuaria a dispor de competência revogatória. Igualmente violado estaria o princípio da plenitude de tutela dos direitos dos particulares, pois impossibilitar a impugnação contenciosa devido à falta de prévia impugnação hierárquica seria negar e violar o direito fundamental de recurso contencioso. Finalmente, estaria também violado o princípio da efetividade de tutela, devido à impossibilidade de impugnar um ato administrativo se for ultrapassado o prazo de interpor um recurso hierárquico.[5]
Não obstante, a maioria da doutrina não seguiu a posição de VASCO PEREIRA DA SILVA.  Na verdade, vários acórdãos declararam a não inconstitucionalidade de recurso hierárquico necessário, como é o caso do acórdão 499/96, de 20 de Março. No mesmo sentido podemos encontrar autores como VIEIRA DE ANDRADE, que considera que o direito ao recurso contencioso não é negado pela necessidade de interposição prévia de um recurso administrativo. Afirma este autor que só se trataria de uma norma inconstitucional, se se provasse que a restrição do direito fundamental em causa era arbitrária ou desproporcionada perante os valores justificativos de recurso. Ora, diz VIEIRA DE ANDRADE que o que fundamenta a interposição de recurso hierárquico são os valores comunitários de unidade da ação administrativa e a economia processual e que, na verdade, estão assim assegurados vários benefícios dos administrados (como a suspensão da eficácia do ato recorrido, a dispensa do patrocínio por advogado, a obrigação à decisão de um órgão administrativo mais qualificado, mais controle de mérito).[6]
Mais tarde, no CPTA de 2002, foi estabelecido que também são impugnáveis os chamados “atos lesivos”. Dispunha o art. 51º nº1 do CPTA que “Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.”.[7] Esta alteração entrou em conflito com a definibilidade vertical. Concluiu-se que não fazia sentido interpor um recurso hierárquico antes de impugnar um ato administrativo, desaparecendo esta regra do ordenamento administrativo português.[8] Desta forma, o recurso hierárquico deixou de ser necessário para passar a ser somente facultativo.
Não obstante, a paz doutrinária relativa aos recursos hierárquicos não durou muito tempo. Rapidamente foi encontrado um novo problema que dividiu os autores. A dúvida que se colocou foi se a queda desta regra geral inviabiliza o recurso hierárquico necessário quando especialmente previsto em leis avulsas?
Mais uma vez, a maioria da doutrina considerou que quando este pressuposto processual esteja previsto especialmente numa lei avulsa, então deve ser tido como válido e necessário. Um dos defensores desta teoria é MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, que considera que o CPTA não pode revogar as determinações legais avulsas que exigem impugnação hierárquica e que tal só seria possível, se existisse uma disposição que expressamente extinguisse todas estas determinações legais. Assim, não existindo uma lei em contrário, diz este autor que “As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quanto este a considere justificada.”.[9] Afirma ainda este autor que não se pode argumentar a favor da inconstitucionalidade desta solução, pois não cabe à Constituição definir e estabelecer pressupostos dos quais poderá depender a impugnação de atos administrativos, a não ser na remota situação de o legislador impor requisitos flagrantemente excessivos e desproporcionados.[10]
Novamente VASCO PEREIRA DA SILVA se opôs a tais argumentos. Vamos enunciar as suas mais importantes linhas de defesa. Por um lado, afirmou ser um absurdo que o recurso hierárquico necessário seja novamente exigido, se acabou por se estabelecer que o seu único objetivo – permitir a impugnação de atos administrativos a nível contencioso – foi geralmente aceite sem a recorribilidade à impugnação hierárquica. Comenta, não sem razão, que seria uma contradição insanável que acabaria por criar uma nova categoria conceptual: a do “recurso hierárquico necessário desnecessário”.[11] Outro argumento utilizado por este autor prende-se com o facto de que, uma vez caída a regra geral, devem também cair as regras especiais, pois a revogação da primeira implica forçosamente a revogação das segundas.[12]  Por outro lado ainda, VASCO PEREIRA DA SILVA afirma ainda que o CPTA concretizou o princípio de promoção de acesso à justiça no seu art. 7º, de acordo com o qual a regra de evitar as “diligências inúteis” deve sobrepor-se às formalidades e não se imagina nada mais inútil do que continuar a exigir uma garantia administrativa que deixou de ser pressuposto necessário.[13]
Entretanto surgiu a Reforma de 2015 e com ela surgiu uma série de inovações. O art. 185º do Código de Procedimento Administrativo (doravante designado por “CPA”) passou a estabelecer uma diferença expressa entre os recursos hierárquicos necessários e facultativos, enunciando que “As reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de impugnação ou condenação à prática de ato devido.”, sendo que “As reclamações e os recursos têm caráter facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários.” (art. 185º nº2 CPA). Ora, para complementar esta disposição, devemos guiar-nos pelo exposto no art. 3º nº1 do Decreto-Lei nº4/2015, de 7 de Janeiro. Este artigo apresenta uma breve série de expressões que, quando previstas numa lei, enunciam o carácter necessário das impugnações administrativas. São as referidas expressões as seguintes: impugnação “necessária”; “existe sempre” reclamação ou recurso do ato em causa; a impugnação administrativa “suspende” ou “tem efeito suspensivo” dos efeitos do ato impugnado.
Deste modo, o legislador tentou pôr fim à divergência doutrinária relativamente à questão do recurso hierárquico necessário quando previsto especialmente em leis avulsas, apresentando situações em que tal impugnação hierárquica deve ser tida como pressuposto para a impugnação contenciosa.
Ainda assim, VASCO PEREIRA DA SILVA continua a discordar com esta solução do legislador. Já na altura do projeto de revisão do CPA, este autor considerava que o este projeto iria afastar o estabelecido no CPTA, ou seja, a inexistência de um pressuposto processual de impugnação hierárquica necessária de atos administrativos.[14] Atualmente mantem a mesma posição -  de que o CPTA não prevê este pressuposto processual, pelo que, mesmo quando previsto em leis especiais avulsas, este não deve ser tido em conta.
Como breve nota conclusiva podemos afirmar que o recurso hierárquico necessário já proporcionou muitos problemas e várias metafóricas dores de cabeça. A verdade é que com a solução do legislador apresentada na Reforma de 2015, a questão tanto debatida parece estar solucionada de uma vez por todas. No entanto, também compreendemos a posição de VASCO PEREIRA DA SILVA pois, ainda que o seu argumento seja excessivamente formal, o que interessa ao fim do dia é a tão procurada por todos JUSTIÇA. Assim, deixamos aqui para refletir a seguinte pergunta: “Será que, tendo em conta a tutela dos interesses dos indivíduos, a solução do legislador na Reforma de 2015 é a melhor?”. 







Zuzanna Sadlowska
Nº24201 





[1] ALMEIDA, Mário Aroso de; “Considerações em Torno do Conceito de Acto Administrativo Impugnável” in: Estudos em Homenagem ao professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento, Vol. II, Coimbra Editora, 2006, p.283
[2] ALMEIDA; “Considerações ...” op. cit., p. 280 e 281
[3] ALMEIDA; “Considerações ...” op. cit., p. 281
[4] OLIVEIRA, Mário Esteves de Leis; OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de; TAVARES, Gonçalo Guerra; DENTE, Nuno Monteiro; OLIVEIRA, Alexandre Esteves de; Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol. I, Almedina, 2006, p. 347.
[5] SILVA, Vasco Pereira de; Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1966, p. 660 e ss.
[6] Posição de VIEIRA DE ANDRADE na sua anotação ao Ac. 499/96 do Tribunal Constitucional - VIEIRA DE ANDRADE, José; “Em defesa do recurso hierárquico necessário” in: Cadernos de Justiça Administrativa, nº 0, Novembro/Dezembro de 1996, p.19
[7] É de realçar que o objetivo do legislador não era dizer que todos os atos que lesassem os direitos ou interesses legalmente protegidos seriam impugnáveis contenciosamente pois, como diz MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, se assim fosse, não teria colocado os atos dependentes do requisito da eficácia externa. O que se terá pretendido com este artigo era “afirmar o “núcleo duro” da tutela jurisdicional em face de decisões administrativas externas, o qual assenta justamente na lesão dessas posições jurídico-substantivas” – OLIVEIRA, Código..., op. cit., p. 346.
[8] OLIVEIRA, Código..., op. cit., p. 347.
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de; O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, p. 123.
[10] ALMEIDA, O Novo..., op. cit., p. 124.
[11] SILVA, Vasco Pereira de; De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo” in: Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, Setembro/Outubro de 2004, p.26.
[12] Ainda a este respeito, mas de certa forma à margem, cabe-nos realçar que este autor considera que nunca se deveria falar num fenómeno de revogação, mas de uma situação de caducidade por falta de objeto. – SILVA; “De necessário ...”, op. cit., p. 27.
[13] SILVA; “De necessário ...”, op. cit., p. 26 e ss.
[14] SILVA, Vasco Pereira de; “ “O Inverno dos nosso descontentamento”: As impugnações administrativas no projeto de revisão do CPA” in: Cadernos de Justiça Administrativa, nº 100, Julho/Agosto de 2013, p.124.

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