O
recurso hierárquico como pressuposto da impugnação contenciosa tem vindo a ser
uma questão extremamente controversa, acerca da qual não cessam querelas
doutrinárias. Na presente dissertação desejamos abordar o conceito do recurso
hierárquico, analisar a sua necessariedade ao longo dos tempos, bem como
questionar-nos se esta necessariedade deve ou não existir perante normas
especiais.
De
início, cumpre fazer uma abordagem geral sobre o problema em questão. Na
atualidade é possível impugnar os atos administrativos. O regime que regula
esta situação está patente nos arts. 51º e seguintes do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (doravante designado “CPTA”). A dúvida que se coloca
é saber se entre os vários pressupostos processuais exigidos para a impugnação
contenciosa, a prévia utilização de um recurso hierárquico é um destes
pressupostos.
Ora,
antigamente, a impugnabilidade do ato administrativo era designada “recorribilidade”
e baseava-se numa tripla definitividade: material, vertical e horizontal. De
acordo com MARCELLO CAETANO, um ato administrativo materialmente definitivo é
um ato que define a situação jurídica própria ou de um terceiro através de uma
entidade pública. Dito de outro modo, é um ato consubstanciado numa decisão com
eficácia externa.[1] Já
a definitividade vertical consubstancia-se numa resolução final da qual não
cabe recurso na ordem hierárquica, visto que a decisão foi tomada no exercício
de uma competência exclusiva. Trata-se, portanto, de um pressuposto processual
que faz depender a impugnação imediata perante tribunais administrativos de um
ato administrativo.[2]
Finalmente, a definitividade horizontal baseia-se na ideia de que o ato a ser
impugnado tem de ser o último ato de todos, ou seja, tem de ser o ato final do
procedimento administrativo. Deste modo, todos os outros atos anteriores que
fossem meramente preparatórios e tivessem por objetivo levar à existência este
ato final, não poderiam vir a ser objeto de recurso contencioso.[3]
Desta
forma, a impugnação hierárquica era uma condição genérica de acesso de um ato
administrativo ao contencioso administrativo, sendo assim um pressuposto
processual.[4] Consecutivamente,
só poderiam ser impugnáveis os atos definitivos e executórios.
Um
opositor crucial do recurso hierárquico necessário como pressuposto da
impugnação contenciosa foi VASCO PEREIRA DA SILVA. Este autor defendia a
inconstitucionalidade da impugnação hierárquica com base em quatro argumentos
principais. Por um lado considerava que tal estado das coisas viola o princípio
da separação entre a Administração e a Justiça, uma vez que preclude o direito
de acesso ao tribunal devido à não utilização das garantias administrativas.
Por outro lado considerava também que estaríamos perante violação do princípio
de desconcentração administrativa, visto que o superior continuaria a dispor de
competência revogatória. Igualmente violado estaria o princípio da plenitude de
tutela dos direitos dos particulares, pois impossibilitar a impugnação
contenciosa devido à falta de prévia impugnação hierárquica seria negar e
violar o direito fundamental de recurso contencioso. Finalmente, estaria também
violado o princípio da efetividade de tutela, devido à impossibilidade de
impugnar um ato administrativo se for ultrapassado o prazo de interpor um
recurso hierárquico.[5]
Não
obstante, a maioria da doutrina não seguiu a posição de VASCO PEREIRA DA
SILVA. Na verdade, vários acórdãos
declararam a não inconstitucionalidade de recurso hierárquico necessário, como
é o caso do acórdão 499/96, de 20 de Março. No mesmo sentido podemos encontrar
autores como VIEIRA DE ANDRADE, que considera que o direito ao recurso
contencioso não é negado pela necessidade de interposição prévia de um recurso
administrativo. Afirma este autor que só se trataria de uma norma
inconstitucional, se se provasse que a restrição do direito fundamental em
causa era arbitrária ou desproporcionada perante os valores justificativos de
recurso. Ora, diz VIEIRA DE ANDRADE que o que fundamenta a interposição de
recurso hierárquico são os valores comunitários de unidade da ação
administrativa e a economia processual e que, na verdade, estão assim
assegurados vários benefícios dos administrados (como a suspensão da eficácia
do ato recorrido, a dispensa do patrocínio por advogado, a obrigação à decisão
de um órgão administrativo mais qualificado, mais controle de mérito).[6]
Mais
tarde, no CPTA de 2002, foi estabelecido que também são impugnáveis os chamados
“atos lesivos”. Dispunha o art. 51º nº1 do CPTA que “Ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os
actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo
seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.”.[7]
Esta alteração entrou em conflito com a definibilidade vertical. Concluiu-se
que não fazia sentido interpor um recurso hierárquico antes de impugnar um ato
administrativo, desaparecendo esta regra do ordenamento administrativo
português.[8]
Desta forma, o recurso hierárquico deixou de ser necessário para passar a ser
somente facultativo.
Não
obstante, a paz doutrinária relativa aos recursos hierárquicos não durou muito
tempo. Rapidamente foi encontrado um novo problema que dividiu os autores. A
dúvida que se colocou foi se a queda desta regra geral inviabiliza o recurso
hierárquico necessário quando especialmente previsto em leis avulsas?
Mais
uma vez, a maioria da doutrina considerou que quando este pressuposto
processual esteja previsto especialmente numa lei avulsa, então deve ser tido
como válido e necessário. Um dos defensores desta teoria é MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, que considera que o CPTA não pode revogar as determinações legais
avulsas que exigem impugnação hierárquica e que tal só seria possível, se
existisse uma disposição que expressamente extinguisse todas estas
determinações legais. Assim, não existindo uma lei em contrário, diz este autor
que “As decisões administrativas
continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária
nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma
opção consciente e deliberada do legislador, quanto este a considere
justificada.”.[9]
Afirma ainda este autor que não se pode argumentar a favor da
inconstitucionalidade desta solução, pois não cabe à Constituição definir e
estabelecer pressupostos dos quais poderá depender a impugnação de atos
administrativos, a não ser na remota situação de o legislador impor requisitos
flagrantemente excessivos e desproporcionados.[10]
Novamente
VASCO PEREIRA DA SILVA se opôs a tais argumentos. Vamos enunciar as suas mais
importantes linhas de defesa. Por um lado, afirmou ser um absurdo que o recurso
hierárquico necessário seja novamente exigido, se acabou por se estabelecer que
o seu único objetivo – permitir a impugnação de atos administrativos a nível
contencioso – foi geralmente aceite sem a recorribilidade à impugnação
hierárquica. Comenta, não sem razão, que seria uma contradição insanável que
acabaria por criar uma nova categoria conceptual: a do “recurso hierárquico
necessário desnecessário”.[11]
Outro argumento utilizado por este autor prende-se com o facto de que, uma vez
caída a regra geral, devem também cair as regras especiais, pois a revogação da
primeira implica forçosamente a revogação das segundas.[12]
Por outro lado ainda, VASCO PEREIRA DA
SILVA afirma ainda que o CPTA concretizou o princípio de promoção de acesso à
justiça no seu art. 7º, de acordo com o qual a regra de evitar as “diligências
inúteis” deve sobrepor-se às formalidades e não se imagina nada mais inútil do
que continuar a exigir uma garantia administrativa que deixou de ser
pressuposto necessário.[13]
Entretanto
surgiu a Reforma de 2015 e com ela surgiu uma série de inovações. O art. 185º
do Código de Procedimento Administrativo (doravante designado por “CPA”) passou
a estabelecer uma diferença expressa entre os recursos hierárquicos necessários
e facultativos, enunciando que “As
reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou
não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos
de impugnação ou condenação à prática de ato devido.”, sendo que “As reclamações e os recursos têm caráter
facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários.” (art. 185º nº2
CPA). Ora, para complementar esta disposição, devemos guiar-nos pelo exposto no
art. 3º nº1 do Decreto-Lei nº4/2015, de 7 de Janeiro. Este artigo apresenta uma
breve série de expressões que, quando previstas numa lei, enunciam o carácter
necessário das impugnações administrativas. São as referidas expressões as
seguintes: impugnação “necessária”; “existe sempre” reclamação ou recurso do
ato em causa; a impugnação administrativa “suspende” ou “tem efeito suspensivo”
dos efeitos do ato impugnado.
Deste
modo, o legislador tentou pôr fim à divergência doutrinária relativamente à
questão do recurso hierárquico necessário quando previsto especialmente em leis
avulsas, apresentando situações em que tal impugnação hierárquica deve ser tida
como pressuposto para a impugnação contenciosa.
Ainda
assim, VASCO PEREIRA DA SILVA continua a discordar com esta solução do
legislador. Já na altura do projeto de revisão do CPA, este autor considerava
que o este projeto iria afastar o estabelecido no CPTA, ou seja, a inexistência
de um pressuposto processual de impugnação hierárquica necessária de atos
administrativos.[14]
Atualmente mantem a mesma posição - de
que o CPTA não prevê este pressuposto processual, pelo que, mesmo quando
previsto em leis especiais avulsas, este não deve ser tido em conta.
Como
breve nota conclusiva podemos afirmar que o recurso hierárquico necessário já
proporcionou muitos problemas e várias metafóricas dores de cabeça. A verdade é
que com a solução do legislador apresentada na Reforma de 2015, a questão tanto
debatida parece estar solucionada de uma vez por todas. No entanto, também
compreendemos a posição de VASCO PEREIRA DA SILVA pois, ainda que o seu
argumento seja excessivamente formal, o que interessa ao fim do dia é a tão
procurada por todos JUSTIÇA. Assim, deixamos aqui para refletir a seguinte
pergunta: “Será que, tendo em conta a tutela dos interesses dos indivíduos, a
solução do legislador na Reforma de 2015 é a melhor?”.
[1] ALMEIDA, Mário Aroso
de; “Considerações em Torno do Conceito de Acto Administrativo Impugnável” in: Estudos em Homenagem ao professor Doutor
Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento, Vol. II, Coimbra Editora,
2006, p.283
[4] OLIVEIRA, Mário Esteves de Leis; OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de; TAVARES,
Gonçalo Guerra; DENTE, Nuno Monteiro; OLIVEIRA, Alexandre Esteves de; Código de Processo nos Tribunais Administrativos
Volume I e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Vol.
I, Almedina, 2006, p. 347.
[6] Posição de VIEIRA DE ANDRADE na sua anotação ao Ac. 499/96 do Tribunal
Constitucional - VIEIRA DE ANDRADE, José; “Em defesa do recurso hierárquico
necessário” in: Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 0, Novembro/Dezembro de 1996, p.19
[7] É de realçar que o objetivo do legislador não era dizer que todos os
atos que lesassem os direitos ou interesses legalmente protegidos seriam
impugnáveis contenciosamente pois, como diz MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, se assim
fosse, não teria colocado os atos dependentes do requisito da eficácia externa.
O que se terá pretendido com este artigo era “afirmar o “núcleo duro” da tutela jurisdicional em face de decisões
administrativas externas, o qual assenta justamente na lesão dessas posições
jurídico-substantivas” – OLIVEIRA, Código...,
op. cit., p. 346.
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de; O Novo
Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, p. 123.
[11] SILVA, Vasco Pereira de; “De
necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso
administrativo” in: Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 47, Setembro/Outubro de 2004, p.26.
[12] Ainda a este respeito,
mas de certa forma à margem, cabe-nos realçar que este autor considera que
nunca se deveria falar num fenómeno de revogação, mas de uma situação de
caducidade por falta de objeto. – SILVA; “De necessário ...”, op. cit., p. 27.
[13] SILVA; “De necessário
...”, op. cit., p. 26 e ss.
[14] SILVA, Vasco Pereira de; “ “O Inverno dos nosso descontentamento”: As
impugnações administrativas no projeto de revisão do CPA” in: Cadernos de Justiça Administrativa, nº
100, Julho/Agosto de 2013, p.124.
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