domingo, 18 de dezembro de 2016

No divã da condenação à prática do ato devido


No divã da condenação à prática do ato devido


A Jurisprudência ocupa uma posição determinante no ordenamento jurídico português no que concerne à matéria da condenação à prática do ato devido, inserida no âmbito do contencioso Administrativo.


Assim sendo, faço desde inicio referência ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo nr 00090/11.0BEPRT, no qual, o assunto em epígrafe é tratado.


No que concerne ao mérito do recurso, é disposto o seguinte, “sob a epígrafe de «ato administrativo inimpugnável», que nos “… casos em que a lei substantiva o admita, designadamente no domínio da responsabilidade civil da Administração por atos administrativos ilegais, o tribunal pode conhecer, a título incidental, da ilegalidade de um ato administrativo que já não possa ser impugnado …” (n.º 1), na certeza de que sem “… prejuízo do disposto no número anterior, a ação administrativa comum não pode ser utilizada para obter o efeito que resultaria da anulação do ato inimpugnável …” (n.º 2)”.


Mais dispõe o douto Acórdão, fazendo referência taxativa aos artigos 66 e ss do CPTA: “Preceitua-se no art. 66.º do CPTA que a “… ação administrativa especial pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado …” (n.º 1), sendo que ainda “… que a prática do ato devido tenha sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória …” (n.º 2). Resulta, por sua vez, do art. 69.º do mesmo diploma que em “… situações de inércia da Administração, o direito de ação caduca no prazo de um ano contado desde o termo do prazo legal estabelecido para a emissão do ato ilegalmente omitido…” (n.º 1) e tendo “… havido indeferimento, o prazo de propositura da ação é de três meses …” (n.º 2), sendo que no “… caso previsto no número anterior, o prazo corre desde a notificação do ato, sendo aplicável o disposto nos artigos 59.º e 60.º …” (n.º 3).
Por fim, prevê-se no n.º 2 do art. 493.º do CPC que as “… exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal ...”.


Ora, a ação de condenação da Administração à prática do ato devido introduziu nos artigos 66º e seguintes do CPTA uma das manifestações de mudança do contencioso administrativo, no sentido de que, passou da mera anulação para a plena jurisdição.


“Em Portugal, é a constituição de 1976 que vai obrigar o Contencioso Administrativo a “deitar-se no divã” de “psicanálise”, para enfrentar problemas “velhos” e “novos” e buscar a respetiva “cura” através da introdução de um contencioso de plena jurisdição.”[1] Com a revisão constitucional de 1997, no artigo 268 nr 4CRP, vem expressamente regulado a possibilidade de determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos, como referência ao princípio de tutela jurisdicional plena e efetiva dos direitos dos particulares face à Administração, que segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, constitui o “novo centro” do Contencioso Administrativo.


Para o Professor Regente, “foi na sequência deste longo “processo terapêutico”, em que o Contencioso Administrativo português tanto se “sentou” no “divã da Constituição”, como no “divã da Europa”, como experimentou ainda métodos de discussão e de “psicoterapia de grupo”, que surgiu a ação de condenação à prática de atos devidos, como modalidade de ação administrativa especial (artigos 66º e seguinte CPTA).”


Assim, à luz do já enunciado artigo 66 nr 1 CPTA, o pedido serve “para obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado”.


A pretensão em causa, do particular, prevista nos termos do art. 67 nr 2 CPTA, refere que o objeto deste tipo de ação não é o ato de indeferimento, mas sim da pretensão do particular. Seguindo a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, o objeto do processo correspondente à pretensão do particular, é o mesmo que uma ação para defesa de interesses próprios, sendo a condenação da prática do ato devido um pedido imediato, decorrente de um direito subjetivo do sujeito que corresponde ao pedido mediato, que foi lesado pela omissão ou pela atuação ilegal da Administração, sendo este aspeto a causa de pedir.


Não obstante o acima exposto, em 2015, com a reforma do Contencioso, a dicotomia entre ação administrativa e ação administrativa especial deixou de se verificar. Antes da reforma, a condenação à prática do ato era considerada uma ação administrativa especial, após a reforma e com o desaparecimento da dicotomia a condenação à prática de ato devido veio a ser designada por ação administrativa. A condenação à prática do ato devido veio substituir a figura do indeferimento tácito, previsto anteriormente no artigo 109º CPA.


Refere J.C. Vieira de Andrade a propósito da dicotomia ação administrativa comum/ação administrativa especial que “… a diferença entre as duas formas depende de estar, ou não, em causa a prática ou a omissão de manifestações de poder público, o que significa que continua a pensar-se - afinal, pelo menos em certa medida, continuando a tradição dos sistemas euro-continentais - num regime especial para o domínio das decisões administrativas, em razão do exercício formal de poderes unilaterais (ou do incumprimento de deveres) de autoridade …” pelo que “… o critério decisivo para a distinção entre os dois domínios de regime processual parece ser o da existência, ou não, de uma relação jurídica tendencialmente paritária entre as partes - haverá um regime especial nos casos em que, na relação material controvertida, se afirme a autoridade de uma das partes sobre a outra, em regra, da Administração sobre o particular …” [i]


Por outro lado, o conceito de ato devido é indeterminado e discricionário, desde que a sua emissão seja legalmente obrigatória. Segundo o entendimento do Professor Viera de Andrade o ato devido “é, portanto, aquele ato administrativo que na perspetiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma pura omissão ou uma recusa- e ainda quando tenha sido praticada um ato que não satisfaz ou não satisfaça integralmente uma pretensão.” O Professor Vasco Pereira da Silva discorda desta posição e entende que “esta visão do “objeto do processo” que, de acordo com a lógica tradicional, sobrevaloriza o pedido imediato relativamente ao mediato e à causa de pedir, não é suscetível de abarcar a integralidade do objeto da ação de condenação à prática de ato devido, além de se encontrar em desconformidade com as soluções legais”.


A nova redação de 2015 do artigo 37º CPTA enuncia expressamente atos devidos nos termos de vínculo contratualmente assumido, terminando com as dúvidas quanto a atos administrativos cuja prática representasse o cumprimento de um dever contratual. Dispõe assim este artigo no seu nr 1 CPTA que, a ação administrativa é “aplicável a todos os litígios sujeitos à jurisdição administrativa relativamente aos quais não esteja expressamente estabelecida uma regulação especial pelo CPTA ou por legislação avulsa”.[2]


O CPTA no que diz respeito a esta matéria exige ainda, um procedimento prévio, da iniciativa do interessado, isto é, um requerimento dirigido ao órgão competente, com a pretensão de obter a prática de um ato administrativo, art.67 nr 1 CPTA. Na alínea a) do art.67 nr 1 CPTA, verifica-se o indeferimento tácito. O Professor Regente sustenta que em caso de indeferimento tácito, há lugar na mesma a uma ação de condenação à prática do ato devido. Na alínea b), primeira parte do mesmo artigo, verifica-se o indeferimento expresso e a segunda parte é determinada a recusa de apreciação do requerimento. A recusa da Administração pode fundar-se em razões formais ou de competências, por ser entendido o poder discricionário de não apreciação do pedido; por não se tratar de um verdadeiro requerimento; ou por não ter dever de decisão.


Na dita revisão de 2015, acrescentaram-se três situações em que é possível pedir a condenação da Administração (artigo 67 CPTA). A primeira situação é a referente à alínea c) do artigo 67 nr 1 CPTA, que diz respeito à situação de indeferimento parcial, dependente de prévio requerimento. A segunda situação é a do indeferimento indireto “quando a mera impugnação de uma decisão positiva não é suficiente para permitir uma satisfação integral dos direitos e interesses legalmente protegidos dos autores”, previsto nos termos do artigo 67 nr 4 al. b) CPTA. E a terceira situação está prevista no artigo 67 nr 4 al. a) CPTA, “quando não tenha sido cumprido o dever de emitir um ato administrativo que resultava diretamente da lei”.


É importante agora mencionar a questão da legitimidade para requerer a condenação à prática de um ato administrativo em causa. Esta pode ser ativa, art.68 nr 1 CPTA ou passiva art.68 nr 2 CPTA. Têm assim, legitimidade ativa para apresentar este pedido, quem alegue ser titular de direitos ou interesses legalmente protegidos art.68 nr 1 al. a) CPTA; o Ministério Público, enquanto titular da ação popular art.68 nr 1 al. b) CPTA; as pessoas coletivas, públicas ou privadas art.68 nr 1 al. c) CPTA; e as demais pessoas e entidades referidas no art.9 nr 2CPTA, a que correspondem interesses difusos (art.68 nr 1 al. f) CPTA). Em 2015, acrescentam-se as alíneas d) e e) no art.68 CPTA, a legitimidade dos órgãos administrativos e dos presidentes dos órgãos colegiais para a apresentação desses pedidos. Na legitimidade passiva são obrigatoriamente demandados ao contrainteressados.


No que diz respeito ao prazo de propositura da ação, o mesmo, depende da circunstância de ter havido inércia do órgão ou um indeferimento, à luz do art.69 CPTA. Nos termos do art.69 nr 1 CPTA, em caso de omissão, o prazo é de um ano contado desde o termo do prazo legal estabelecido para a emissão do ato.


Após a reforma, acrescentou-se no nr 2 do art.69 CPTA, a recusa de apreciação do requerimento (partindo do princípio que não houve indeferimento), e o pedido de substituição de conteúdo estabelece-se um prazo igual ao fixado para a impugnação do ato pelos interessados. Foi ainda acrescentada, quando na presença de um ato nulo a sujeição do pedido de condenação ao prazo de dois anos, contados da notificação do indeferimento, da recusa ou do ato cujo conteúdo que se pretende ver substituído at.69 nr 3 CPTA. Anteriormente à reforma, havia o entendimento de que nesses casos não havia prazo para a ação e para outros que seria de aplicar o prazo de um ano, tratando-se a situação como se não houvesse ato.


Podendo existir casos de inércia ou de recusa de apreciação, quando, na pendência do processo, seja praticado ou notificado um ato de indeferimento expresso, o interessado pode ampliar a causa de pedir, invocando novos fundamentos e oferecendo novos meios de prova art. 70ºnr 1 e 2. Caso seja verificada a situação, na pendência do processo, ou seja, um ato que não satisfaça integralmente as pretensões do interessado, este pode optar por pedir, ou a condenação à prática de outro ato, ou a anulação ou declaração de nulidade do ato sobrevindo  art. 70 nr 3. Anteriormente, previa-se a cumulação de pedidos, pressupondo que a condenação pode não ser suficiente para satisfazer o interesse do particular, apesar de esta eliminar o indeferimento, pois que se trata de um ato que é do particular.


Dispõe à luz desta matéria o artigo 71 CPTA, relativamente ao conteúdo da sentença, a medida da condenação corresponde ao âmbito da vinculação da Administração, ou mais concretamente, ao conteúdo do direito do particular. Assim, sempre que o particular seja titular de um direito a uma determinada conduta da Administração e quando esta não atuou quando era obrigatório, ou seja estando legalmente vinculada, o tribunal irá averiguar se houve uma preterição de uma vinculação legal. No entanto, como já referido, não esta sempre em causa a violação de um conteúdo legalmente pré-determinado, podendo existir situações em que a Administração atua com base em poderes discricionários, em que nos termos do nr 2 do artigo 71 CPTA, o tribunal irá verificar o âmbito dos poderes discricionários exercidos, bem como, as vinculações da Administração.


Este processo enunciado necessita de uma análise concreta dos poderes da Administração, ou seja, se estamos perante um poder vinculado ou se estamos perante uma atuação com base em poderes discricionários, uma vez que, no que toca às decisões do tribunal, estas vão diferenciar-se quanto aos âmbitos dos poderes referidos supra. Para o Professor Mário A. Almeida, o tribunal deve especificar quais os elementos vinculativos, deixando os restantes à margem de liberdade de escolha da Administração.


Em suma, resta mencionar o referido no Acórdão, sendo que em primeiro lugar, após a reforma de 2015 deixou-se de aplicar “Por princípio a ação administrativa comum é a forma processual na qual são dirimidos os litígios da competência dos tribunais administrativos", aplicando-se a ideia de que a Administração não poderia ser condenada pela prática dos seus atos, nem que os tribunais se poderiam intrometer na sua atividade, muito menos condenar a Administração. Com este regime, alargou-se o âmbito de proteção dos particulares, podendo estes, iniciar logo um processo contencioso da condenação da Administração à prática do ato, que foi omitido ou recusado, e não simular a anulação do ato em causa. O incumprimento do dever legal de decidir (a condenação da administração a praticar o ato devido) é um regime mais favorável aos particulares que vêm os seus direitos subjetivos legalmente tutelados a serem violados perante a inércia administrativa.


Ana Teresa Garcia Milho, subturma 9, nr aluna 23811

Bibliografia



Almeida, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013

Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 14ª Edição, Almedina, 2015

Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009



[1] Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009
[2] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa, 14º Edição, Almedina, 2015



[i] in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 11.ª edição, 2011, pág. 150] (vide igualmente sustentando mesmo posicionamento M. Aroso de Almeida in: “Manual de Processo Administrativo”, 2010, págs. 73 e 74) [vide, ainda, Acs. do TCAN de 31.01.2008 - Proc. n.º 00620/04.4BEBRG, de 15.10.2010 - Proc. n.º 00988/06.8BEPRT, de 08.04.2011 - Proc. n.º 01467/08.4BEVIS, de 08.04.2011 - Proc. n.º 01070/09.1BEBRG in: «www.dgsi.pt/jtcn»

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