segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Arbitragem Administrativa: Enquadramento, Âmbito e Regime

Como sabemos, o processo administrativo não se desenvolve apenas perante Tribunais Administrativos que integram a estrutura primária dos tribunais do Estado, desenvolvendo-se igualmente perante tribunais arbitrais. Assim sendo, ao contrário do que podemos verificar noutros países, a arbitragem sobre litígios administrativos encontra-se em franca expansão, em parte devido à sua tradição, na ordem jurídica portuguesa.
O reconhecimento de que se podem constituir tribunais arbitrais para a resolução de assuntos administrativos, no que concerne à interpretação, validade ou execução de contratos e à constituição por via da responsabilidade civil por danos causados pela Administração no âmbito da sua atividade de gestão pública, é desde há muito pacífico na nossa ordem jurídica, não vigorando assim em Portugal, uma reserva de jurisdição estadual, no respeitante aos litígios relacionados com a Administração Pública.
O art. 209.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), ao estatuir as “categorias de tribunais” admitidas na ordem jurídica portuguesa, refere no seu n.º2 os tribunais arbitrais, o que nos permite aferir que a CRP não se limita a assumir a admissibilidade do recurso à arbitragem como uma forma normal de resolução de conflitos jurídicos, indo mais longe, ao consagrar, inequivocamente, a natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais, da atividade que estes se propõem a desempenhar e, deste modo, das decisões por estes proferidas.
Através da conjugação dos arts. 211.º e 212.º/3 verificamos que para o tema em mãos estes têm que ser interpretados em harmonia com o art. 209.º/2, com o fim de se reconhecer que este só confere poderes de jurisdição aos Tribunais Administrativos do Estado sob reserva da existência de tribunais arbitrais e, assim sendo, da possibilidade da sua intervenção, com a extensão que ao legislador cumpre delimitar no exercício da sua função.
Pelo art. 212.º/3 da CRP, os tribunais administrativos não são, em Portugal, apenas os tribunais permanentes do Estado, mas também os Tribunais Administrativos Arbitrais que venham a ser constituídos de modo a resolver litígios jurídico-administrativos.
Cumpre-nos agora verificar o âmbito da arbitragem administrativa relativamente à Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), sendo que conforme estabelece o seu art. 2.º/4, “o Estado e outras pessoas coletivas de Direito Público podem celebrar convenções de arbitragem na medida em que para tal estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objeto litígios de direito privado”.
A este propósito, o primeiro aspeto que carece de análise é o facto de deste preceito resultar claramente a arbitrabilidade (sendo que este termo tem por objeto exprimir a qualidade dos litígios que podem ser submetidos a arbitragem, de modo a poderem ser validamente celebradas convenções de arbitragem, serem constituídos tribunais arbitrais e esses tribunais proferirem decisões), por aplicação direta do regime da LAV, dos litígios decorrentes de gestão privada dos entes públicos, relativas a relações de Direito Privado.
De referir que no diz respeito aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, não existe uma norma de permissão geral da arbitragem em matéria administrativa, dependendo a concretização de convenções arbitrais da existência de lei que permita a sua celebração.
Logo, verificamos que daqui resulta que a admissibilidade da arbitragem em matéria administrativa não resulta do critério geral de arbitrabilidade que, para os litígios de Direito Privado, resulta do art. 2.º/2 da LAV, sendo que é ao legislador que compete eleger o critério ou critérios que o orientarão na identificação  dos casos concretos ou dos domínios genéricos em que entenda dever autorizar a submissão da resolução de litígios de Direito Público à decisão de árbitros.
É ao Direito Administrativo que, em diploma ou diplomas próprios, cumpre definir um regime próprio no respeitante aos critérios de arbitrabilidade a adotar no âmbito das relações jurídicas administrativas. Naturalmente, a LAV não se pronuncia sobre esta questão, cuja sede própria reside nas disposições de Direito Administrativo.
Até 2004, a matéria da arbitrabilidade de Direito Administrativo era regulada no art. 2.º/2 do ETAF de 1984, nos termos do qual só eram admitidos tribunais arbitrais “no domínio do contencioso dos contratos administrativos e da responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de atos de gestão publica, incluindo o contencioso das ações de regresso”.
Inerente a esta solução, tínhamos o entendimento de que as matérias de Direito Administrativo passíveis de serem submetidas à arbitragem deviam ser delimitadas por referência a um vago critério de disponibilidade, de acordo com o qual poderiam ser submetidas à resolução por árbitros as questões que, por não respeitarem ao exercício de poderes públicos, não têm de ser dirimidas por estrita aplicação de disposições legais.
No âmbito do regime deste artigo, era discutida na doutrina a questão da admissibilidade da arbitragem sobre o exercício de poderes de autoridade da Administração. Em conformidade com este critério, era tradicionalmente vedada a arbitragem no exercício de poderes de autoridade da Administração.
Contudo, havia quem na Doutrina defendesse que mesmo no âmbito do exercício de poderes de autoridade da Administração, só seria nos domínios de estrita vinculação legal que as situações jurídicas estariam subtraídas à disponibilidade da Administração, pelo que seria de admitir a possibilidade de arbitragem sobre o próprio exercício de poderes e autoridade da Administração, desde que limitada a domínios de discricionariedade administrativa.
Atualmente, o CPTA regula este tema no Título VIII, a que correspondem os arts. 180.º a 187.º , existindo agora no nosso ordenamento jurídico um regime do qual resulta uma permissão genérica, por categorias de matérias, do recurso à arbitragem em matérias de Direito Administrativo.
Conforme dispõe o n.º1 do presente artigo, pode ser constituído um tribunal arbitral para o julgamento, tanto de questões relativas a contratos, como de questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, incluindo a efetivação do direito de regresso.
Com a revisão de 2015, o art. 180.º/1, b) estendeu o âmbito da arbitrabilidade às questões respeitantes a “indemnizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas”, ainda que estas indemnizações não se fundem na aplicação do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Concluímos assim que existiu, na arbitragem administrativa uma mudança de paradigma decorrente da consagração da regra da admissibilidade da submissão à arbitragem de qualquer litígio no domínio da fiscalização da legalidade de atos administrativos.
Temos assim uma perspetiva de evolução introduzida, parcialmente, pelo art. 187.º com a previsão da possibilidade da existência de arbitragem administrativa institucionalizada no nosso ordenamento jurídico, tendo primeiramente em visa a abertura da arbitragem, que o CPTA encetou de modo precursor, à apreciação de litígios sobre questões de legalidade de atos administrativos, sendo que o Estado pode reconhecer a centros de arbitragem institucionalizada já existentes a possibilidade de funcionarem igualmente como centros de arbitragem de litígios de natureza administrativa, mediante o preenchimento de determinados requisitos.

Bibliografia: 
-AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016

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