Helena
Manoel Viana
i)
Introdução
O
reenvio prejudicial para o STA vem previsto no art. 93.° do Código do Processo
nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”), sob a epígrafe de “Julgamento
em formação alargada e consulta prejudicial para o Supremo Tribunal
Administrativo”.
Este artigo deve ser lido em conjunto com o n.° 2 do art. 25.° do ETAF[1],
que comete ao Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”) competência
para se pronunciar relativamente ao sentido em que deva ser resolvida por um
Tribunal Administrativo de Círculo uma “questão de direito nova que suscite
dificuldades sérias e se possa vir a colocar noutros litígios”. Ou seja,
estabelece os mesmos critérios que estão previstos no art. 93.° do CPTA.
Alguns autores entendem que a
consagração deste instituto se deve a três preocupações fundamentais. São elas
a superação de um previsível défice de qualidade da jurisprudência dos novos
tribunais administrativos de círculo, que têm agora competência para dirimir
mais litígios, a prevenção do contencioso, designadamente em relação a questões
novas susceptíveis de serem repetidas, e a maior uniformidade da jurisprudência
administrativa[2].
Este
meio processual surgiu com a reforma Administrativa de 2002/2004. No CPTA de
2015, este meio sofreu uma
ligeira alteração, que parece que vem atenuar as dúvidas da
inconstitucionalidade, ou não, que o reenvio colocava, para autores como SÉRVULO
CORREIA.
O reenvio prejudicial consagrado
no CPTA encontra inspiração no Direito da União Europeia e no ordenamento
jurídico francês. Na União Europeia, o reenvio prejudicial encontra-se previsto
no art. 267.° no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[3].
No entanto, apesar de inspiração no direito francês, o seu regime tem algumas
diferenças, nomeadamente no facto do reenvio francês não ser vinculativo,
constituindo apenas um parecer, contrariamente ao que acontece em Portugal, em
que a decisão do STA é vinculativa para o tribunal da Primeira instância, como
veremos adiante.
ii)
Requisitos para se suscitar o reenvio prejudicial para
o STA
Para que se possa suscitar o
reenvio prejudicial para o STA, devem estar preenchidos os seguintes requisitos[4]:
1.
A existência de uma questão de direito nova: Ao estabelecer que conhece
questões de direito está, obviamente, a vedar o conhecimento de matéria de
facto. E qual é o critério relativo às questões de direito novas? É possível
enunciar três[5]:
um critério material, segundo o qual uma questão de direito seria nova se
respeitasse a uma norma ou a um acto recente; um critério orgânico, segundo o
qual são novas as questões nunca antes submetidas ao STA; e, um critério misto,
nos termos do qual seriam questões novas de direito aquelas que sendo normas
recentes, nunca tivessem sido apresentadas ao STA. Deverá tratar-se de uma
questão que não haja constituído ainda objecto de apreciação directa pelo STA,
sendo que não deixará de considerar uma questão nova só porque já foi objecto
de decisão por outro TAC, ou até pelo mesmo TAC[6].
2.
Uma questão de direito que suscite dificuldades sérias: Deve decorrer de uma
dúvida de interpretação razoável, por exemplo, o sentido de de uma norma ser
equívoco, ou haver uma divergência na interpretação, e deve ser uma necessidade
inultrapassável para a decisão final. Para SÉRVULO CORREIA as dificuldades sérias “dão-se
por assentes quando se desenhem em alternância respostas de nenhuma das quais
seja evidente a procedência”[7]
3.
Uma questão de direito que possa vir a ser suscitada noutros litígios: É considerado
por alguns um requisito sem autonomia[8],
que se reconduz à exigência de a questão suscitar dificuldades sérias. Se tal
acontecer, é provável que volte a suceder noutras acções.
iii)
Tramitação do reenvio
O reenvio prejudicial encontra-se
previsto no Capítulo III (que regula a marcha do processo), na secção IV (que
regula o julgamento). Decorre do n.° 1 do art. 93.° que apenas os tribunais
administrativos do círculo podem suscitar o reenvio prejudicial. O n.° 2 do
art. 93.° prevê que o reenvio não pode ter lugar em processos urgentes e pode
ser liminarmente recusado, a título definitivo, quando uma formação de três
juizes de entre os mais antigos da secção de contencioso administrativo do STA
considere que não se encontram preenchidos os respectivos pressupostos ou que a
escassa relevância da questão não justifica a emissão de uma pronúncia.
O juiz da causa tem de propor o
reenvio, mas cabe ao presidente do tribunal decidir submeter, ou não, a questão
ao STA. Antes, não era necessário o juiz da causa propor ao presidente do
tribunal, cabendo apenas ao presidente a decisão de reenviar. Colocava-se a
questão de uma eventual violação do princípio da independência do juiz da
causa, uma vez que este ficava vinculado a uma decisão que este não reenviou,
mas sim o presidente do tribunal.
Procede-se ao reenvio após a fase
de saneamento e antes da fase da instrução. Sendo o reenvio admitido, prazo
para a emissão da pronúncia é três meses, contado de acordo com as regras
gerais.
iv)
Efeitos da pronúncia do STA
Relativamente à natureza da
pronúncia, o legislador português afastou-se do legislador francês, ao prever na
alínea b), do n.° 1 do art. 93.° que o STA emite uma pronúncia vinculativa
sobre a questão. O legislador francês estabeleceu que a pronúncia do tribunal
superior não é vinculativa, no raciocínio de que se o tribunal inferior é livre
de suscitar o reenvio, então também é livre de seguir ou não a posição tomada
pelo tribunal superior.
O facto da pronúncia ser
vinculativa pode trazer alguns problemas de inconstitucionalidade, uma vez que
se pode considerar uma violação ao princípio da independência dos tribunais[9].
Mas este problema de inconstitucionalidade pode ser afastado, na medida em que
o STA apenas se pronuncia sobre questões de Direito.
SÉRVULO
CORREIA entende que se
deve falar em “partilha de tarefas no
exercício da jurisdição sobre um caso concreto”, tal como acontece no Direito
da União Europeia.
Apesar da pronúncia ser vinculativa, a pronúncia
emitida pelo STA não o vincula relativamente a novas pronúncias que venha a
emitir no futuro, sobre a mesma matéria, fora do âmbito do mesmo processo[10],
o que faz sentido.
[1] Este artigo
dispõe: “Compete ainda ao pleno da Secção de Contencioso Administrativo do
Supremo Tribunal Administrativo pronunciar-se, nos termos estabelecidos na lei
de processo, relativamente ao sentido em que deve ser resolvida, por um
tribunal administrativo de círculo, questão de direito nova que suscite
dificuldades sérias e se possa vir a colocar noutros litígios.”
[2] Neste sentido,
cfr. MANUEL MARTINS, in Estudos de
Direito Público, Âncora Editora, . Também, VÍTOR GOMES, “O reenvio
prejudicial para o Supremo Tribunal Administrativo: limites naturais ou
insucesso?”, in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.° 101, Setembro/Outubro, 2013, p. 90.
[3] Antigo artigo
234.° do TCE.
[4] Sendo que o “preenchimento
dos três pressupostos legais não conferem verdadeiramente discricionaridade de
admissão”. Cfr. SÉRVULO CORREIA, Direito
Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: Lex, 2005, p. 698.
[5] Neste sentido,
MANUEL MARTINS, op. cit., pp. 497-498.
[6] Neste sentido,
SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 698; e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES
DE OLIVEIRA, Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, I, p. 540.
[7] Cfr. SÉRVULO
CORREIA, op. cit, p. 699.
[8] Cfr. MANUEL
MARTINS, op. cit., pp. 504-505.
[9] A independência
dos tribunais também se coloca entre tribunais inferiores e tribunais
superiores. Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 700.
[10] É o que dispõe
o n.° 4 do art. 93.° do CPTA.
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