domingo, 18 de dezembro de 2016

Breves notas sobre o Reenvio Prejudicial para o STA

Helena Manoel Viana

i)                    Introdução

O reenvio prejudicial para o STA vem previsto no art. 93.° do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”), sob a epígrafe de “Julgamento em formação alargada e consulta prejudicial para o Supremo Tribunal Administrativo”. Este artigo deve ser lido em conjunto com o n.° 2 do art. 25.° do ETAF[1], que comete ao Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”) competência para se pronunciar relativamente ao sentido em que deva ser resolvida por um Tribunal Administrativo de Círculo uma “questão de direito nova que suscite dificuldades sérias e se possa vir a colocar noutros litígios”. Ou seja, estabelece os mesmos critérios que estão previstos no art. 93.° do CPTA.
Alguns autores entendem que a consagração deste instituto se deve a três preocupações fundamentais. São elas a superação de um previsível défice de qualidade da jurisprudência dos novos tribunais administrativos de círculo, que têm agora competência para dirimir mais litígios, a prevenção do contencioso, designadamente em relação a questões novas susceptíveis de serem repetidas, e a maior uniformidade da jurisprudência administrativa[2].
Este meio processual surgiu com a reforma Administrativa de 2002/2004. No CPTA de 2015, este meio sofreu uma ligeira alteração, que parece que vem atenuar as dúvidas da inconstitucionalidade, ou não, que o reenvio colocava, para autores como SÉRVULO CORREIA.
O reenvio prejudicial consagrado no CPTA encontra inspiração no Direito da União Europeia e no ordenamento jurídico francês. Na União Europeia, o reenvio prejudicial encontra-se previsto no art. 267.° no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[3]. No entanto, apesar de inspiração no direito francês, o seu regime tem algumas diferenças, nomeadamente no facto do reenvio francês não ser vinculativo, constituindo apenas um parecer, contrariamente ao que acontece em Portugal, em que a decisão do STA é vinculativa para o tribunal da Primeira instância, como veremos adiante.

ii)                  Requisitos para se suscitar o reenvio prejudicial para o STA
Para que se possa suscitar o reenvio prejudicial para o STA, devem estar preenchidos os seguintes requisitos[4]:
1. A existência de uma questão de direito nova: Ao estabelecer que conhece questões de direito está, obviamente, a vedar o conhecimento de matéria de facto. E qual é o critério relativo às questões de direito novas? É possível enunciar três[5]: um critério material, segundo o qual uma questão de direito seria nova se respeitasse a uma norma ou a um acto recente; um critério orgânico, segundo o qual são novas as questões nunca antes submetidas ao STA; e, um critério misto, nos termos do qual seriam questões novas de direito aquelas que sendo normas recentes, nunca tivessem sido apresentadas ao STA. Deverá tratar-se de uma questão que não haja constituído ainda objecto de apreciação directa pelo STA, sendo que não deixará de considerar uma questão nova só porque já foi objecto de decisão por outro TAC, ou até pelo mesmo TAC[6].
2. Uma questão de direito que suscite dificuldades sérias: Deve decorrer de uma dúvida de interpretação razoável, por exemplo, o sentido de de uma norma ser equívoco, ou haver uma divergência na interpretação, e deve ser uma necessidade inultrapassável para a decisão final. Para SÉRVULO CORREIA as dificuldades sérias “dão-se por assentes quando se desenhem em alternância respostas de nenhuma das quais seja evidente a procedência”[7]
3. Uma questão de direito que possa vir a ser suscitada noutros litígios: É considerado por alguns um requisito sem autonomia[8], que se reconduz à exigência de a questão suscitar dificuldades sérias. Se tal acontecer, é provável que volte a suceder noutras acções.

iii)                Tramitação do reenvio
O reenvio prejudicial encontra-se previsto no Capítulo III (que regula a marcha do processo), na secção IV (que regula o julgamento). Decorre do n.° 1 do art. 93.° que apenas os tribunais administrativos do círculo podem suscitar o reenvio prejudicial. O n.° 2 do art. 93.° prevê que o reenvio não pode ter lugar em processos urgentes e pode ser liminarmente recusado, a título definitivo, quando uma formação de três juizes de entre os mais antigos da secção de contencioso administrativo do STA considere que não se encontram preenchidos os respectivos pressupostos ou que a escassa relevância da questão não justifica a emissão de uma pronúncia.
O juiz da causa tem de propor o reenvio, mas cabe ao presidente do tribunal decidir submeter, ou não, a questão ao STA. Antes, não era necessário o juiz da causa propor ao presidente do tribunal, cabendo apenas ao presidente a decisão de reenviar. Colocava-se a questão de uma eventual violação do princípio da independência do juiz da causa, uma vez que este ficava vinculado a uma decisão que este não reenviou, mas sim o presidente do tribunal.
Procede-se ao reenvio após a fase de saneamento e antes da fase da instrução. Sendo o reenvio admitido, prazo para a emissão da pronúncia é três meses, contado de acordo com as regras gerais.

iv)                Efeitos da pronúncia do STA
Relativamente à natureza da pronúncia, o legislador português afastou-se do legislador francês, ao prever na alínea b), do n.° 1 do art. 93.° que o STA emite uma pronúncia vinculativa sobre a questão. O legislador francês estabeleceu que a pronúncia do tribunal superior não é vinculativa, no raciocínio de que se o tribunal inferior é livre de suscitar o reenvio, então também é livre de seguir ou não a posição tomada pelo tribunal superior.
O facto da pronúncia ser vinculativa pode trazer alguns problemas de inconstitucionalidade, uma vez que se pode considerar uma violação ao princípio da independência dos tribunais[9]. Mas este problema de inconstitucionalidade pode ser afastado, na medida em que o STA apenas se pronuncia sobre questões de Direito.
SÉRVULO CORREIA entende que se deve falar em “partilha  de tarefas no exercício da jurisdição sobre um caso concreto”, tal como acontece no Direito da União Europeia.
Apesar da pronúncia ser vinculativa, a pronúncia emitida pelo STA não o vincula relativamente a novas pronúncias que venha a emitir no futuro, sobre a mesma matéria, fora do âmbito do mesmo processo[10], o que faz sentido.



[1] Este artigo dispõe: “Compete ainda ao pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo pronunciar-se, nos termos estabelecidos na lei de processo, relativamente ao sentido em que deve ser resolvida, por um tribunal administrativo de círculo, questão de direito nova que suscite dificuldades sérias e se possa vir a colocar noutros litígios.”
[2] Neste sentido, cfr. MANUEL MARTINS, in Estudos de Direito Público, Âncora Editora, . Também, VÍTOR GOMES, “O reenvio prejudicial para o Supremo Tribunal Administrativo: limites naturais ou insucesso?”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.° 101, Setembro/Outubro, 2013, p. 90.
[3] Antigo artigo 234.° do TCE.
[4] Sendo que o “preenchimento dos três pressupostos legais não conferem verdadeiramente discricionaridade de admissão”. Cfr. SÉRVULO CORREIA, Direito Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa: Lex, 2005, p. 698.
[5] Neste sentido, MANUEL MARTINS, op. cit., pp. 497-498.
[6] Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 698; e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, I, p. 540.
[7] Cfr. SÉRVULO CORREIA, op. cit, p. 699.
[8] Cfr. MANUEL MARTINS, op. cit., pp. 504-505.
[9] A independência dos tribunais também se coloca entre tribunais inferiores e tribunais superiores. Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, op. cit., p. 700.
[10] É o que dispõe o n.° 4 do art. 93.° do CPTA.

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