A
figura da aceitação do ato administrativo vem regulada no artigo 56º CPTA, na
secção referente à impugnação de atos administrativos e subsecção “da
legitimidade” o que, segundo Vasco Pereira da Silva, se justifica pelos
resquícios históricos ainda existentes no contencioso administrativo que
negavam aos particulares a titularidade de direitos subjetivos perante a
Administração e que fazem delimitar a legitimidade processual com base no interesse
em agir (interesse direto e pessoal). Assim, o interesse em agir era visto como
condição de legitimidade, tendo como consequência a não consideração do mesmo
como pressuposto processual autónomo.[1]
A
figura do interesse em agir, que consiste na aferição da necessidade em obter a
tutela judicial de uma situação subjetiva para proteção dos direitos ou
interesses legítimos dos particulares através do uso de um determinado meio processual,
está inserida no âmbito da legitimidade, dado que ao nível da impugnação de
atos exige-se que o impugnante tenha um interesse direito e pessoal.[2]
Esta
figura (artigo 56º CPTA) pode ser entendida, à primeira vista, como um
pressuposto processual negativo do pedido de impugnação de atos
administrativos, dado que a verificação dos seus pressupostos confere a perda
do direito de impugnação do ato e, como pressuposto processual, impede o
conhecimento pelo juiz do mérito da causa.[3]
Rui
Machete considera que a aceitação é uma declaração negocial que, extinguindo a
posição jurídica substantiva a fazer valer no processo, torna o ato inopugnável
pelo aceitante, sendo que a manifesta “incompatibilidade com a vontade de
recorrer seria então uma qualificação natural do abandono do direito ou
interesse legítimo”.[4]
Atualmente,
porém, perante um contencioso subjetivo de plena jurisdição que apresenta
soluções tendentes à proteção primeira dos particulares, a limitação da
legitimidade ao interesse em agir já não faz sentido. Assim, surgem duas
alternativas para a inserção jurídica da aceitação do ato: como pressuposto
processual autónomo diferente da legitimidade e do interesse em agir, na linha
de pensamento de Vieira de Andrade, ou por via da recondução da aceitação à
falta de interesse processual.[5]
Vasco
Pereira da Silva, apesar de acompanhar Vieira de Andrade quanto à separação da
aceitação do ato do pressuposto de legitimidade, discorda dessa posição quanto
à autonomização da aceitação como um pressuposto autónomo, e soluciona o
problema com recurso ao interesse em agir, em termos semelhantes aos do processo
civil, já que nos casos abrangidos pelo artigo 56º CPTA o particular através de
uma declaração expressa ou tácita de aceitação, demonstra a perda de interesse
na impugnação do ato administrativo.[6]
Sublinha
ainda, Vasco Pereira da Silva, em nome do princípio da tutela jurisdicional
efetiva (268º nº 4 CRP), que nada impede que, caso alteradas as circunstâncias
em que foi emitida a declaração ou adotado o comportamento e ainda dentro do
prazo de impugnação, o particular possa revogar a declaração ou alterar o comportamento
“em virtude de um qualquer efeito preclusivo do direito em agir em juízo”.[7]
Face
a alguma confusão na doutrina e jurisprudência, é relevante neste âmbito fazer
uma breve distinção da figura da aceitação do ato de outras figuras próximas,
como a renúncia ao recurso e o decurso do prazo de impugnação. Quanto à
primeira, distingue-se da aceitação do ato na medida em que a renúncia implica
uma exteriorização da vontade do titular quanto ao não exercício do direito de
impugnar, antes ou depois da impugnação. Já a aceitação do ato implica uma
manifestação de vontade, expressa ou tácita, quanto à substância e conteúdo do
ato e, portanto, aos seus efeitos substanciais. Quanto ao decurso do prazo de
impugnação, este não pode ser visto como uma manifestação de vontade, como
existe na aceitação, nem consiste na prática de um facto, não podendo
significar uma conformação com os efeitos do ato.[8]
No
mesmo sentido, Vieira de Andrade considera a aceitação do ato como um mero ato
jurídico (manifestação de vontade, expressa ou tácita, que vise aceitar as
transformações jurídicas operadas pelo ato), perante o qual a lei determina a
perda da faculdade de impugnar estando esta, porém, sujeita à vontade do
aceitante.[9]
Assim,
o mero ato jurídico de aceitação do ato tem de denotar uma conformação com o
conteúdo da decisão de autoridade, revelada de forma expressa ou tácita, à qual
se chega através de um critério de incompatibilidade normativa (prática de
factos normal e objetivamente incompatíveis com o exercício do direito de
impugnar, no sentido da conformação retirar razão de ser à impugnação[10]) que justifica a perda do
direito à impugnação no caso concreto, por uso desnecessário ou dilatório.[11]
Esta
incompatibilidade configura uma questão de direito, em que o juiz pondera, face
às circunstâncias do caso concreto, os valores da estabilidade do ato e da
economia processual (que justifica o efeito preclusivo da possibilidade de
impugnação) com a necessidade de proteção jurídica dos particulares (que
fundamenta a ação).[12]
Vieira
de Andrade[13]
determina as caraterísticas da aceitação quanto ao âmbito, onde considera que a
aceitação só tem efeitos preclusivos quando esteja em causa a anulabilidade e
não a nulidade do ato e quando seja posterior à prática do ato; quanto às
condições, onde impera a existência de uma vontade livre e esclarecida na
conformação do particular com os efeitos do ato, podendo ser anterior ou posterior
à proposição da ação e quanto aos efeitos, que se reconduzem à impossibilidade
do juiz conhecer o mérito da causa. Poder-se-á, para o que aqui revela,
discutir como já anteriormente foi aflorado, se se trata de perda de
legitimidade, falta de interesse em agir, ou pressuposto processual autónomo.
Sendo
defensor da aceitação do ato administrativo como um pressuposto processual
autónomo da legitimidade e da falta de interesse em agir, Vieira de Andrade[14] começa por afastar a tese
da aceitação como “faceta do instituto da legitimidade processual ativa” na
qual a aceitação tácita coincide com a eliminação do interesse direto, pessoal
e legítimo, dado que afirma que a mesma constitui um exemplo de petitio principii (afirma-se o que teria
de se demonstrar), pois fundamenta-se na aceitação como ilegitimação, visto que
a lei apenas possibilita a impugnação na circunstância de haver um pressuposto
processual de legitimidade.
Neste
âmbito, Vieira de Andrade salienta que não é legítimo rejeitar liminarmente a
aceitação do ato como pressuposto processual autónomo, com fundamento na sua
inconstitucionalidade por violação do direito de acesso à justiça, visto que
este não é um direito absoluto, sendo admitidas compressões ou restrições na
sua orla normativa, desde que não afetem o seu núcleo essencial – a tutela
judicial efetiva.[15] Considera, então, que o
efeito preclusivo da impugnação, consequência natural da aceitação do ato, se
justifica num complexo de valores e interesses, nomeadamente, a economia
processual e a estabilidade das decisões administrativas que, nesse caso,
prevalecem sobre a necessidade de proteção judicial.[16]
Sandra
Lopes Luís, por um lado, distingue a aceitação do pressuposto do interesse em
agir, dado que quando o sujeito aceitante manifesta concordância com o conteúdo
de determinado ato deduz-se que, porque concorda com o ato, não terá qualquer
interesse na sua impugnação. Porém, nos casos em que o ato apresenta aspetos
desfavoráveis para o aceitante, afirma existir sempre interesse em agir do sujeito
aceitante.[17]
Quanto à legitimidade salienta que, face à perda da posição jurídica
substantiva, quem aceita, em princípio, não tem legitimidade para impugnar o
ato administrativo, visto que a aceitação pressupõe a existência de um direito
do sujeito impugnante. Por outro lado, conclui pelo facto de estarmos perante
uma figura de caráter substantivo impedindo que o sujeito aja em contrariedade
com uma posição inicial, que produz efeitos tanto a nível substantivo como
processual (implica a perda da posição jurídica substantiva e também o direito
de impugnação).[18]
Assim
sendo, defende a autonomização da aceitação do ato administrativo ao nível dos
pressupostos processuais das partes, separado do pressuposto da legitimidade e
afirma o seu caráter especial, na medida em que vem formulado na negativa
(exige-se que o impugnante não aceite para que possa impugnar um certo ato).[19]
Face
à exposição e clarificação das principais divergências doutrinárias quanto ao
tipo de classificação do pressuposto processual da aceitação ato
administrativo, consideramos que a tese que afirma que o mesmo configura um
pressuposto processual autónomo da legitimidade e do interesse em agir é aquela
que apresenta argumentos mais sólidos.
Por
um lado, caso enveredássemos pela posição defensora da aceitação do ato
administrativo ligada à legitimidade ou ao interesse em agir, teríamos
invariavelmente que ignorar as diversas críticas apontadas pela doutrina quanto
à junção dos dois conceitos na legislação processual administrativa, apenas
justificada por resquícios históricos.
Por
outro lado, consideramos, na linha de Vieira de Andrade e Sandra Lopes Luís, que
o pressuposto processual da aceitação do ato administrativo se fundamenta,
essencialmente, numa ponderação do direito de acesso à justiça face à
estabilidade das decisões administrativas e a economia processual, valores que
não têm relação direta com a legitimidade ou com a figura do interesse
processual.
[1]
Cfr. SILVA, Vasco Pereira da, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 373, Ed. Almedina, 2º
Edição, 2009, Coimbra.
[2] Cfr.
LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo: conceito,
fundamentos e efeitos, Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas
apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito, 2008, p.
192.
[3]
Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A Aceitação do Ato Administrativo” in Boletim da
Faculdade – Volume Comemorativo, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003, p.
907.
[4] Cfr.
MACHETE, Rui, Sanação (do ato administrativo inválido), in Dicionário Jurídico
da Administração Pública, vol. VII, 1996, p. 339 e ss.
[5]
Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo: conceito,
fundamentos e efeitos, Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas
apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito, 2008, p.
193.
[6] Cfr.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso… cit., p. 374.
[7] Cfr.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso… cit., p. 374.
[8] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 915.
[9] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 917.
[10] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 922.
[11] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 930.
[12] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 933.
[13] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 923.
[14] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 926.
[15] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., pp. 928 e 929.
[16] Cfr.
ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 930.
[17] Cfr.
LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, pp. 194 e
195.
[18] Cfr.
LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, p. 196.
[19] Cfr.
LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, p. 198.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.