domingo, 18 de dezembro de 2016

A aceitação do ato administrativo como pressuposto processual


A figura da aceitação do ato administrativo vem regulada no artigo 56º CPTA, na secção referente à impugnação de atos administrativos e subsecção “da legitimidade” o que, segundo Vasco Pereira da Silva, se justifica pelos resquícios históricos ainda existentes no contencioso administrativo que negavam aos particulares a titularidade de direitos subjetivos perante a Administração e que fazem delimitar a legitimidade processual com base no interesse em agir (interesse direto e pessoal). Assim, o interesse em agir era visto como condição de legitimidade, tendo como consequência a não consideração do mesmo como pressuposto processual autónomo.[1]
A figura do interesse em agir, que consiste na aferição da necessidade em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva para proteção dos direitos ou interesses legítimos dos particulares através do uso de um determinado meio processual, está inserida no âmbito da legitimidade, dado que ao nível da impugnação de atos exige-se que o impugnante tenha um interesse direito e pessoal.[2]
Esta figura (artigo 56º CPTA) pode ser entendida, à primeira vista, como um pressuposto processual negativo do pedido de impugnação de atos administrativos, dado que a verificação dos seus pressupostos confere a perda do direito de impugnação do ato e, como pressuposto processual, impede o conhecimento pelo juiz do mérito da causa.[3]
Rui Machete considera que a aceitação é uma declaração negocial que, extinguindo a posição jurídica substantiva a fazer valer no processo, torna o ato inopugnável pelo aceitante, sendo que a manifesta “incompatibilidade com a vontade de recorrer seria então uma qualificação natural do abandono do direito ou interesse legítimo”.[4]
Atualmente, porém, perante um contencioso subjetivo de plena jurisdição que apresenta soluções tendentes à proteção primeira dos particulares, a limitação da legitimidade ao interesse em agir já não faz sentido. Assim, surgem duas alternativas para a inserção jurídica da aceitação do ato: como pressuposto processual autónomo diferente da legitimidade e do interesse em agir, na linha de pensamento de Vieira de Andrade, ou por via da recondução da aceitação à falta de interesse processual.[5]
Vasco Pereira da Silva, apesar de acompanhar Vieira de Andrade quanto à separação da aceitação do ato do pressuposto de legitimidade, discorda dessa posição quanto à autonomização da aceitação como um pressuposto autónomo, e soluciona o problema com recurso ao interesse em agir, em termos semelhantes aos do processo civil, já que nos casos abrangidos pelo artigo 56º CPTA o particular através de uma declaração expressa ou tácita de aceitação, demonstra a perda de interesse na impugnação do ato administrativo.[6]
Sublinha ainda, Vasco Pereira da Silva, em nome do princípio da tutela jurisdicional efetiva (268º nº 4 CRP), que nada impede que, caso alteradas as circunstâncias em que foi emitida a declaração ou adotado o comportamento e ainda dentro do prazo de impugnação, o particular possa revogar a declaração ou alterar o comportamento “em virtude de um qualquer efeito preclusivo do direito em agir em juízo”.[7]
Face a alguma confusão na doutrina e jurisprudência, é relevante neste âmbito fazer uma breve distinção da figura da aceitação do ato de outras figuras próximas, como a renúncia ao recurso e o decurso do prazo de impugnação. Quanto à primeira, distingue-se da aceitação do ato na medida em que a renúncia implica uma exteriorização da vontade do titular quanto ao não exercício do direito de impugnar, antes ou depois da impugnação. Já a aceitação do ato implica uma manifestação de vontade, expressa ou tácita, quanto à substância e conteúdo do ato e, portanto, aos seus efeitos substanciais. Quanto ao decurso do prazo de impugnação, este não pode ser visto como uma manifestação de vontade, como existe na aceitação, nem consiste na prática de um facto, não podendo significar uma conformação com os efeitos do ato.[8]
No mesmo sentido, Vieira de Andrade considera a aceitação do ato como um mero ato jurídico (manifestação de vontade, expressa ou tácita, que vise aceitar as transformações jurídicas operadas pelo ato), perante o qual a lei determina a perda da faculdade de impugnar estando esta, porém, sujeita à vontade do aceitante.[9]
Assim, o mero ato jurídico de aceitação do ato tem de denotar uma conformação com o conteúdo da decisão de autoridade, revelada de forma expressa ou tácita, à qual se chega através de um critério de incompatibilidade normativa (prática de factos normal e objetivamente incompatíveis com o exercício do direito de impugnar, no sentido da conformação retirar razão de ser à impugnação[10]) que justifica a perda do direito à impugnação no caso concreto, por uso desnecessário ou dilatório.[11]
Esta incompatibilidade configura uma questão de direito, em que o juiz pondera, face às circunstâncias do caso concreto, os valores da estabilidade do ato e da economia processual (que justifica o efeito preclusivo da possibilidade de impugnação) com a necessidade de proteção jurídica dos particulares (que fundamenta a ação).[12]
Vieira de Andrade[13] determina as caraterísticas da aceitação quanto ao âmbito, onde considera que a aceitação só tem efeitos preclusivos quando esteja em causa a anulabilidade e não a nulidade do ato e quando seja posterior à prática do ato; quanto às condições, onde impera a existência de uma vontade livre e esclarecida na conformação do particular com os efeitos do ato, podendo ser anterior ou posterior à proposição da ação e quanto aos efeitos, que se reconduzem à impossibilidade do juiz conhecer o mérito da causa. Poder-se-á, para o que aqui revela, discutir como já anteriormente foi aflorado, se se trata de perda de legitimidade, falta de interesse em agir, ou pressuposto processual autónomo.
Sendo defensor da aceitação do ato administrativo como um pressuposto processual autónomo da legitimidade e da falta de interesse em agir, Vieira de Andrade[14] começa por afastar a tese da aceitação como “faceta do instituto da legitimidade processual ativa” na qual a aceitação tácita coincide com a eliminação do interesse direto, pessoal e legítimo, dado que afirma que a mesma constitui um exemplo de petitio principii (afirma-se o que teria de se demonstrar), pois fundamenta-se na aceitação como ilegitimação, visto que a lei apenas possibilita a impugnação na circunstância de haver um pressuposto processual de legitimidade.
Neste âmbito, Vieira de Andrade salienta que não é legítimo rejeitar liminarmente a aceitação do ato como pressuposto processual autónomo, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do direito de acesso à justiça, visto que este não é um direito absoluto, sendo admitidas compressões ou restrições na sua orla normativa, desde que não afetem o seu núcleo essencial – a tutela judicial efetiva.[15] Considera, então, que o efeito preclusivo da impugnação, consequência natural da aceitação do ato, se justifica num complexo de valores e interesses, nomeadamente, a economia processual e a estabilidade das decisões administrativas que, nesse caso, prevalecem sobre a necessidade de proteção judicial.[16]
Sandra Lopes Luís, por um lado, distingue a aceitação do pressuposto do interesse em agir, dado que quando o sujeito aceitante manifesta concordância com o conteúdo de determinado ato deduz-se que, porque concorda com o ato, não terá qualquer interesse na sua impugnação. Porém, nos casos em que o ato apresenta aspetos desfavoráveis para o aceitante, afirma existir sempre interesse em agir do sujeito aceitante.[17] Quanto à legitimidade salienta que, face à perda da posição jurídica substantiva, quem aceita, em princípio, não tem legitimidade para impugnar o ato administrativo, visto que a aceitação pressupõe a existência de um direito do sujeito impugnante. Por outro lado, conclui pelo facto de estarmos perante uma figura de caráter substantivo impedindo que o sujeito aja em contrariedade com uma posição inicial, que produz efeitos tanto a nível substantivo como processual (implica a perda da posição jurídica substantiva e também o direito de impugnação).[18]
Assim sendo, defende a autonomização da aceitação do ato administrativo ao nível dos pressupostos processuais das partes, separado do pressuposto da legitimidade e afirma o seu caráter especial, na medida em que vem formulado na negativa (exige-se que o impugnante não aceite para que possa impugnar um certo ato).[19]
Face à exposição e clarificação das principais divergências doutrinárias quanto ao tipo de classificação do pressuposto processual da aceitação ato administrativo, consideramos que a tese que afirma que o mesmo configura um pressuposto processual autónomo da legitimidade e do interesse em agir é aquela que apresenta argumentos mais sólidos.
Por um lado, caso enveredássemos pela posição defensora da aceitação do ato administrativo ligada à legitimidade ou ao interesse em agir, teríamos invariavelmente que ignorar as diversas críticas apontadas pela doutrina quanto à junção dos dois conceitos na legislação processual administrativa, apenas justificada por resquícios históricos.
Por outro lado, consideramos, na linha de Vieira de Andrade e Sandra Lopes Luís, que o pressuposto processual da aceitação do ato administrativo se fundamenta, essencialmente, numa ponderação do direito de acesso à justiça face à estabilidade das decisões administrativas e a economia processual, valores que não têm relação direta com a legitimidade ou com a figura do interesse processual.



[1] Cfr. SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 373, Ed. Almedina, 2º Edição, 2009, Coimbra.
[2] Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo: conceito, fundamentos e efeitos, Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito, 2008, p. 192.
[3] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A Aceitação do Ato Administrativo” in Boletim da Faculdade – Volume Comemorativo, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003, p. 907.
[4] Cfr. MACHETE, Rui, Sanação (do ato administrativo inválido), in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VII, 1996, p. 339 e ss.
[5] Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo: conceito, fundamentos e efeitos, Tese de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Direito, 2008, p. 193.
[6] Cfr. SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso… cit., p. 374.
[7] Cfr. SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso… cit., p. 374.
[8] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 915.
[9] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 917.
[10] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 922.
[11] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 930.
[12] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 933.
[13] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 923.
[14] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 926.
[15] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., pp. 928 e 929.
[16] Cfr. ANDRADE, Vieira de, “A aceitação…”, cit., p. 930.
[17] Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, pp. 194 e 195.
[18] Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, p. 196.
[19] Cfr. LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do ato administrativo… cit., 2008, p. 198.

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