domingo, 18 de dezembro de 2016

Causas Legítimas de Inexecução da Obrigação de Prestação de Factos e de Coisas


I. Enquadramento

O processo executivo existe para obter do tribunal a execução do Direito, através da adoção de providências que concretizem o que haja sido juridicamente proferido em sentença resultante de um processo declarativo[1].

O Título VII (do processo executivo) previsto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) só tem aplicabilidade às execuções promovidas contra entidades públicas (art.º 157º, nº 1 do CPTA), uma vez que à execução de sentenças contra particulares é aplicável o disposto na lei processual civil e não o regime previsto no CPTA, independentemente de, também, correrem nos tribunais administrativos (art.º 157º, nº 5).

Contudo, o art.º 157º, nº 1 deve ser objeto de uma interpretação teleológica e como tal, através de um alargamento do âmbito das entidades abrangidas pelo Título VII do CPTA, por entidades públicas deve-se entender não só as pessoas coletivas de direito público mas também as entidades privadas investidas de prerrogativas de poder público[2].

Ora, o art.º 158º, nº 1 do CPTA consagra o princípio da obrigatoriedade das decisões dos tribunais, que se encontra constitucionalmente previsto no art.º 205º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Este princípio é fundamental à eficácia do Estado de Direito, resultando daqui a ilicitude das condutas que desconsiderem as sentenças proferidas pelos tribunais[3]. É neste contexto que, para além da possibilidade de constituir a Administração em responsabilidade pelo incumprimento dessas decisões, é fornecido ao beneficiário a possibilidade de satisfazer o seu direito através da execução forçada da decisão, pelos mecanismos previstos no Título VII do CPTA.

Todavia, a lei prevê certos casos em que, com fundamento em causas legítimas, a execução da decisão jurisdicional não tem que ser levada avante. Pretende-se, deste modo, com este texto explorar precisamente as causas legítimas de inexecução que surgem no âmbito da execução de prestações de factos ou de entrega de coisas (art.º 163º do CPTA).


II. Noção de Causas Legítimas de Inexecução

Decorre do art.º 162º, nº 1 do CPTA que as obrigações de prestar factos ou entregar coisas devem ser cumpridas pela entidade obrigada, num praxo máximo de 90 dias, exceto no surgimento de uma causa legítima de inexecução, que se encontram previstas no art.º 163º. Somente nestes termos podem as obrigações referidas não ser cumpridas, sendo que aos tribunais compete esclarecer a existência de uma causa legítima de inexecução (assim resulta do art.º 164º, nº 5)[4].

Por inexecução entende-se o incumprimento, pelo obrigado (que neste contexto, trata-se de uma das entidades previstas no art.º 157º, nº 1) dos deveres que sobre ele recaem na sequência de uma decisão judicial[5]. Por sua vez, são causas legítimas de inexecução situações excecionais que tornam lícita a inexecução das sentenças dos tribunais administrativos, sendo exigido, em compensação, a atribuição de uma indemnização ao titular do direito à execução[6]/[7].


III. Situações de Causas Legítimas de Inexecução

O art.º 163º, nº 1 determina que só constituem causas legítimas de inexecução as situações de impossibilidade absoluta e o grave prejuízo para o interesse público. Ambas estas situações, no entanto, não se podem sobrepor, uma vez que a primeira causa consiste num impedimento irremovível na execução da sentença, enquanto a segunda corresponde meramente a uma dificuldade ou onerosidade excessiva na execução da obrigação[8], por razões de interesse público.

A impossibilidade absoluta que surge como uma causa legítima de inexecução de obrigações de prestar factos ou entregar coisas não necessitária, à partida, de ser consagrada na lei para que pudesse ser admitida, já que a impossibilidade de prestar uma prestação extingue a sua obrigação (ad impossibilita nemo tenetur)[9]. Todavia, a sua previsão legal tem relevo, uma vez que é descartado o critério do credor suportar o risco da prestação, em detrimento da transferência desse risco para a Administração, através do dever de indemnizar o interessado[10] (segundo consta nos art.º 164º, nº 6 e 166º, nº 1; assim como dos art.º 176º, nº 7 e 177º, nº 3).

Já a segunda modalidade de causas legítimas de inexecução só deverá ter lugar em situações extremamente excecionais, correspondem elas aos casos em que se verifique um amplo desequilíbrio entre o sacrifício suportado pelo interessado através da não satisfação do seu direito e os danos que advirão para a comunidade através da realização da prestação, que deverão ser vastamente superiores[11].

Trata-se de um fenómeno semelhante à figura da expropriação por interesses públicos, pois está em causa o sacrifico especial de pretensões individuais em troca da salvaguarda de outros valores considerados mais relevantes, motivo pelo qual não se pode deixar de ter em consideração o princípio da proporcionalidade[12]. À luz deste princípio, também os interesses de terceiros de boa-fé devem ser considerados, nos mesmos termos que o “grave prejuízo para o interesse público”, sendo que um intolerável sacrifício dos seus interesses determinaria uma causa de legitimidade de inexecução[13].


IV. Execução Parcial

Se a causa legitima de execução não atingir a totalidade da decisão, mas somente uma das partes dispositivas ou um dos efeitos de direito que dela resulta, a Administração poderá ainda ter que executar parcialmente a sentença – isto é o que resulta do art.º 163º, nº 2do CPTA. A aplicabilidade deste artigo torna-se uma realidade se considerarmos o princípio da livre cumulação de pedidos (art.º 4º do CPTA), podendo a sentença a executar ser composta por diferentes pretensões em que o grau e intensidade de execução entre elas vária e, consequentemente, a Administração somente consiga eximir-se de uma delas[14].

Releva notar, entretanto, que o cumprimento do dever de executar equivale ao dever de extrair da sentença todas as consequências que dela advêm. Significa isto que o interessado pode, no caso de execução parcial da sentença, deduzir o pedido de execução coerciva (prevista no art.º 164º) se discordar com a invocação da causa legítima de inexecução na parte por ela abrangida[15].


V. Invocação da Causa Legítima de Inexecução

Previamente à insaturação do processo executivo, a entidade obrigada a cumprir uma sentença pode alegar causas legítimas de inexecução na fase da execução espontânea, atendendo que esteja dentro do prazo de 90 dias para o cumprimento da decisão (art.º 163º, nº 3 e art.º 162º, nº 1), inserindo-se a alegação da causa no âmbito das relações extrajudiciais entre as partes[16].

Se o titular do direito discordar da invocação da causa pode recorrer à execução forçada, expondo os seus fundamentos de desconcordância e especificando os atos e as operações em que deve consistir a execução[17] (art.º 164, nº 5). Pelo contrário, se o credor concordar com a causa invocada, as partes podem acordar sobre o montante da indemnização ou, na falta de acordo, pode o tribunal fazê-lo (art.º 164º, nº 6).

Por outro lado, quando a entidade obrigada não executar espontaneamente a sentença nem alegar qualquer motivo para tal, cabe ao titular do direito[18], requerer ao tribunal a respetiva execução judicial, cabendo meramente à entidade obrigada a possibilidade de deduzir oposição (art.º 165º) ou de alegar circunstâncias supervenientes ou que não estivesse em condições de invocar no momento oportuno do processo (art.º 163, nº 3).

Antes de se esclarecer o significado deste último preceito há que ter em conta três notas. Em primeiro lugar, decorre do art.º 86, nº 2 que factos supervenientes são aqueles que ocorreram posteriormente à apresentação dos articulados no processo declarativo ou aqueles anteriores de que a parte somente obteve conhecimento após essa apresentação. Em segundo lugar, resulta do art.º 86º, nº 1 conjugado com o art.º 163, que as causas legítimas de inexecução podem ser alegadas pela entidade obrigada (a parte a quem aproveitem) até ao encerramento da discussão. Por último, de acordo com o art.º 45º, quando invocadas as causas legítimas de inexecução durante o decurso do processo, ocorre uma modificação objetiva da instância, pelo que, quando válida, o tribunal deverá determinar improcedente o pedido e convidar as partes a acordarem sobre uma indemnização[19]. No seguimento deste último aspeto, quando é detetada uma causa legítima de inexecução da decisão durante o processo, a pretensão do autor é determinada improcedente e a Administração não se chega a confrontar com a execução da sentença, uma vez que o tribunal nunca chegou a emitir uma decisão[20].

Neste contexto, o art.º 163º, nº 3 veda à Administração a possibilidade de invocar causas legítimas de inexecução, no âmbito de um processo executivo, quando o poderia ter feito posteriormente e impossibilitado a emissão de uma sentença que julgue procedente a pretensão do autor[21]/[22]. Tal invocação só será possível se os factos em questão corresponderem a factos supervenientes.

Todavia, esta norma tem que ser interpretado restritivamente, no sentido de referir apenas as causas legítimas de inexecução não supervenientes que, apesar do grave prejuízo para o interesse público, possam ser praticadas, pois tratando-se de uma impossibilidade absoluta, pela sua natureza, a decisão não pode ser executada[23].


VI. Eficácia da Sentença

Resulta do art.º 160º que a sentença torna-se eficaz e, consequentemente, suscitável de execução quando transite em julgado (art.º 160º, nº 1) ou quando não houver decisão definitiva tiver sido requerido ao tribunal, para o qual se recorre, que seja atribuído ao recurso um efeito meramente devolutivo (faculdade concedida pelo art.º 143º, nº 3, 4 e 5), pelo que é através do trânsito em julgado ou da notificação do despacho de admissão do recurso que os prazos correm para a execução espontânea da sentença (art.º 160º, nº 2) [24].

Todavia, nesta última hipótese, a execução tem um caráter provisório, encontrando-se dependente de uma decisão confirmatória por parte do tribunal, sendo que a Administração poderá invocar uma causa legítima de inexecução a partir da notificação, com efeito de obstar à execução provisória da sentença do tribunal recorrido[25].


VII. Inexecução Ilícita; Indemnizações Decorrentes da Inexecução

Quando uma sentença que deva ser executada não o é e caso não haja nenhuma causa legítima de inexecução gera-se uma situação de inexecução ilícita, prevista no art.º 159º. Sendo que, este preceito complementa o princípio da obrigatoriedade das decisões para todas as entidades públicas e privadas (art.º 158º)[26].

O art.º 159º, nº 2 expõe que a inexecução licita pode dever-se ao incumprimento espontâneo da sentença quando transcorre o prazo legal fixado para a execução ou quando haja um incumprimento deficiente da execução segundo o estabelecido pelo tribunal (al. b) ou quando seja manifestada uma inequívoca intenção de não cumprir, o que requere uma passividade acrescida de uma atitude de resistência à ordem jurisdicional[27] (al. a). Decorre, igualmente do proémio do art.º 159º, nº 1 que são considerados como inexecução ilícita os casos em que seja invocada uma causa legítima de inexecução que não seja considerada precedente e a Administração não execute a sentença[28].

Ora, a verificação de um caso de inexecução ilícita pode originar responsabilidade civil, disciplinar e criminal (art.º 159º, nº 1, al. a) e b) e nº 2).

Em relação à responsabilidade criminal, estatui o art.º 348º, nº 1, al. a) do Código Penal que existe crime desobediência quando uma disposição legal cominar a punição de desobediência simples a ordem ou mandado legítimo que hajam sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente. O preceito em questão consiste no art.º 159º, nº 2 do CPTA. Haverá assim responsabilidade criminal quando a Administração haja sido notificada para cumprir a sua obrigação e manifeste inequivocamente a intenção de não cumprir sem que haja qualquer causa legítima para tal (159º, nº 2, al. a) e haverá idêntica responsabilidade também quando a Administração tenha sido notificada e no entanto não proceda a cumprimento nos termos idênticos aos estabelecidos pelo tribunal em sentença (159º, nº 1, al. b).

No que toca à responsabilidade disciplinar e civil ao art.º 157º, nº 1 não estabelece qualquer pressuposto específico, sendo que, na eventualidade de inexecução ilícita as indemnizações são fixadas, no plano formal, através de ação declarativa comum, seguindo-se o regime geral, no plano substantivo[29].

No seguimento da responsabilidade civil, cabe, por último, fazer um balanço das indemnizações que podem ser concedidas pela entidade obrigada ao interessado, que tanto podem resultar de uma atuação ilícita como podem ser o resultado da existência de uma causa legítima de inexecução.

A inexecução da sentença pode levar a diversos tipos de indemnizações. Surge, deste modo, i) a indemnização moratória (art.º 164º, nº 4), cuja função passa por ressarcir os prejuízos provocados pela consequente mora na execução da sentença; ii) a indemnização por causa legítima de inexecução (art.º 166º, nº 1), que consiste na conversão do processo executivo em processo indemnizatório, correspondendo esta indemnização ao valor pecuniário que for devido pela inexecução e destina-se a ressarcir o titular do direito pela impossibilidade ou inconveniência de se efetuar a reparação em espécie mediante a restituição da situação jurídica violada[30]; iii) e a indemnização por inexecução ilícita (art.º 159º, nº 1, al. a), que consiste na responsabilidade civil da Administração por não ter cumprido a sentença ou por não ter cumprido a totalidade das especificações que constavam da decisão, violando em ambos estes casos o princípio da obrigatoriedade das decisões judiciais[31].



[1] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2ª Edição, Almedina, 2016, P. 471
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual op. cit., P. 472
[3] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, P. 788
[4] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 807
[5] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, P. 792
[6] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 793 e 807; AMARAL, Diogo Freitas do, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª Edição, Almedina, 1997, P. 123
[7] “Que a ocorrência de causas legítimas de inexecução desonera as entidades públicas no seu dever de cumprir […], resulta do art.º 162º, nº 1 (assim como do art.º 175º, nº 1). Que a extinção do dever de cumprir dá origem a um dever de pagar “a indemnização devida pelo facto da inexecução”, resulta dos artigos 164º, nº 6, 166º, nº 1, 176º, nº 7 e 177, nº 3”. ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 807
[8] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 166; ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 808
[9] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 808
[10] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 808 e 809
[11] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 808
[12] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 809
[13] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 809 e 810. Referem também os autores que dadas as circunstâncias, por poderem ser qualificadas como impossibilidade jurídica, é possível que tais situações tenham antes enquadramento na modalidade de impossibilidade absoluta.
[14] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 166; ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 810
[15] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 810
[16] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 811
[17] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 169
[18] Interessado este que deverá ser detentor de um título executivo, que em regra corresponderá à sentença de condenação, proferida contra uma entidade pública por um tribunal administrativo. ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 811 e 811
[19] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 167
[20] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 167
[21] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 167; ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 811 e 812
[22] Este limite apenas é aplicável aos processos de execução para prestação de factos ou entrega de coisas, como decorre do art.º 175º, nº 2.
[23] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 167
[24] O efeito meramente devolutivo do recurso, obriga a sentença recorrida durante a decorrência do recurso, pelo que Administração encontra-se vinculada a acatar a sentença desde a notificação da decisão à qual foi atribuída efeito meramente devolutivo (art.º 160º, nº 2). ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 797
[25] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 168
[26] ALMEIDA, Mário Aroso de/CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário op. cit., P. 792
[27] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 170
[28] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 170
[29] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 171
[30] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 171
[31] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Dicionário op. cit., P. 171 e 172

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