segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Carta a Agnès Blanco

Querida Agnès, ou Agnese ou Inês,

No século XXI não és apenas uma pequena rapariga francesa; No século XXI és Agnese, Inês e tantos outros nomes em tantas outras línguas. Porquê? Porque tu, Agnès, infelizmente inspiraste o Contencioso Administrativo Europeu. Porque hoje és a cara da Justiça Administrativa que conhecemos.
Quando remontamos a 1871, o teu ano negro, encontramos a origem da necessidade de estender os mecanismos de responsabilidade civil ao Direito Administrativo. A sorte que hoje temos é a consequência do azar que tu sofreste.
Em Portugal encontrávamos até há muito pouco uma administração pública “desresponsabilizada”, uma administração pública que agia inconsequentemente na segurança de que nada lhe aconteceria. Mas e os particulares? A esses restava-lhe confiar na vida, acreditando que nada de mal a administração pública lhes faria.
Em 2002, aquando da reforma do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a proposta de lei de responsabilidade civil extracontratual do Estado viu-se rejeitada. Este acto consubstanciou-se numa falta de protecção dos particulares inaceitável no mundo moderno, entendemos nós. Por exemplo, se tu, Agnès, tivesses sofrido o mesmo acidente que sofreste em França em 1871 mas em Portugal em 2000 os resultados teriam sido os mesmos. Não conhecíamos respostas, não sabíamos um problema de responsabilidade civil da Administração Pública devia ser julgado em tribunais comuns ou em tribunais judiciais, não sabíamos se estávamos perante um acto de gestão privada ou gestão pública nem mesmo se a situação era regulada pelo Direito privado ou se pelo Direito público. As respostas começaram a surgir: diziam Sérvulo Correia, Rogério Soares e Freitas do Amaral que importava saber se estávamos pu não perante um ambiente de Direito público. Mas o que era afinal um ambiente de Direito público? As respostas começavam efectivamente a surgir mas com elas apareciam novas dúvidas.
O princípio da responsabilidade do Estado está previsto na CRP nos artigos 22.º e 271.º, não restando dúvidas de que a Administração Pública deve ser responsabilizada pelos danos que possa causar
Os problemas da responsabilidade civil extracontratual administrativa começaram a ser solucionados em 2004 quando os litígios em matéria de responsabilidade administrativas começaram a ser tratados pelo contencioso administrativo. Decidiu, também, o legislador que os Tribunais administrativos eram competentes para decidir  sempre que houvesse lugar a responsabilidade civil dos órgãos administrativos. A solução parecia aceitável, mas os resultados revelaram-se desastrosos: facilmente num caso como o teu o Estado num pedido reconvencional pediria que os teus pais ressarcissem o Estado pelos prejuízos sofridos pela administração (a destruição do carro, por exemplo) e o Tribunal ainda decidiria a favor do Estado. Onde estariam os teus direitos?
Só em 2007 é que o legislador português entendeu ser pertinente criar um regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado relativamente sensato, com a lei 67/2007 de 31 de Dezembro.
O diploma, no seu artigo 1º, volta a suscitar as dúvidas que já tínhamos exposto: o que é afinal uma gestão pública e uma gestão privada? Defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos que a manutenção desta ideia foi intenciona, lamentando-a, no entanto. Carla Amado Gomes entende a ideia e defende a sua manutenção em determinados casos. Já Vasco Pereira da Silva considera que a manutenção desta ideia não foi mais que um equívoco do legislador mas que este estabeleceu alguma unidade e que foi deixada uma porta aberta que permitirá a unificação da responsabilidade de toda a Administração Pública. Entende, também Vasco Pereira da Silva, que hoje podemos considerar o regime da responsabilidade civil um regime unitário.
O diploma de 2007 veio eliminar as dúvidas quanto à competência para decidir questões de responsabilidade civil extracontratual do Estado. O artigo 4º, n.º1 alíneas f), g) e h)  do ETAF prevê, inclusivamente, que as questões de responsabilidade civil extracontratual do Estado fazem parte do âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos. Assim, a Lei 67/2007 preocupa-se em abranger os “danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa”.
Entende Vasco Pereira da Silva que a Lei ao fazer referência a princípios de Direito Administrativo demonstra que o legislador quis consagrar um regime uniforme para todo o regime da responsabilidade civil da Administração Pública. Esta é a solução alemã que remete todos os regimes para uma solução unitária do ponto de vista jurisdicional e legislativo.
A solução legislativa encontrada comporta, no entanto, uma grande deficiência: os Tribunais ao condenarem a Administração Pública estão simultaneamente a condenar o próprio particular lesado uma vez que este é, de algum modo, responsável pelo património da Administração Pública, na medida em que paga impostos, por exemplo. Devemos olhar para esta questão de uma forma em que vejamos o comportamento como um todo em que a Administração Pública tem de cumprir com os seus deveres e não lesar os direitos dos particulares.
Resta-nos agradecer-te a ti, Agnès, por seres a origem do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado que conhecemos hoje em dia e agradecer-te por teres sido a cara de todos os particulares na luta por uma verdadeira Justiça Administrativa capaz de defender os particulares.

Obrigada por teres garantido que hoje, caso aconteça algo, temos todos direito a um tratamento digno,

Marta Castro Henriques


Marta C.H. Tavares

Aluna nº 24091

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