segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A INTIMAÇÃO PARA A PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS: BREVES NOTAS


Com este trabalho propomo-nos a analisar brevemente três pontos do regime da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias que nos suscitaram algumas dúvidas.
Em primeiro lugar, cumpre precisar que as intimações são processos urgentes que dão a oportunidade de, por via judicial, impor à Administração a adoção de determinada conduta. Por questões de urgência na resolução e de necessidades de celeridade este processo ao invés de seguir a tramitação normal caraterística da ação administrativa, segue uma tramitação especial, em moldes mais acelerados.
Em segundo lugar, é necessário explicar também que este foi um meio que surgiu no Contencioso Administrativo em 2002 e, mais importante, que nasceu com o intuito de concretizar o disposto no art.º 20 nº 5 da Constituição, que nos diz que “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”
 No que diz respeito aos pressupostos exigidos para o recurso a este meio processual, o nº1 do art.º 109 do CPTA estabelece que este pode ser utilizado quando seja necessária a emissão célere de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que seja indispensável para garantir o exercício deste direito, liberdade ou garantia em tempo útil. Determina-se ainda que só poderá recorrer-se a esta intimação quando o decretamento provisório de uma providência cautelar não satisfaça estes requisitos.
Chegados aqui, cumpre referir que, questão já mais antiga que a revisão de 2015, era a de saber que direitos, liberdades e garantias entrariam no âmbito desta intimação. É que, surgindo este meio como uma concretização do art.º 20 nº5 da CRP, então só seria possível recorrer à intimação para a defesa de direitos liberdades e garantias pessoais como, por exemplo, o direito à vida, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Apesar disto, a doutrina[1], e também a jurisprudência[2], têm entendido que, apesar de este processo se traduzir numa densificação do preceito constitucional, o legislador conferiu a esta intimação um âmbito bastante mais alargado que, além dos direitos liberdades e garantias pessoais em si mesmos, inclui no seu objeto todos os outros direitos liberdades e garantias – de participação política e dos trabalhadores - e até os direitos fundamentais de natureza análoga, art.º 17 da CRP.
Parece-nos, no entanto, pouco razoável ir ao ponto de incluir estes últimos pois na verdade não se trata de direitos, liberdades e garantias em sentido próprio. Quando, no art.º 17 da CRP se estende o regime dos direitos, liberdades e garantias a outros direitos fundamentais cuja natureza análoga com estes seja captada pelo interprete, o legislador constituinte não está a determinar que cada referência legal a direitos, liberdades e garantias tenha alcance a todos os similares. Aquilo que resulta do art.º 17 é apenas e tão-só que outros direitos fundamentais não compreendidos entre os artigos 24 e 58 da CRP beneficiam do regime constitucional privativo dos direitos, liberdades e garantias, designadamente em matéria de restrições (art.º 18 nº2 e nº3), de aplicação imediata (art.º 18 nº2), de suspensão (art.º 19) e de outros. É mesmo duvidoso que o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias (art.º 165 nº1 b)) deva também aplicar-se aos que apenas têm natureza análoga[3].
Um dos casos incontroversos de direitos fundamentais com natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias é o direito à fundamentação dos administrativos lesivos (art.º 268 nº3). Não faria sentido admitir a intimação dos artigos 109º e seguintes do CPTA justamente para a defesa de direitos fundamentais que estão no cerne do direito processual administrativo geral. É verdade que entre os pressupostos está a indispensabilidade para assegurar o exercício em tempo útil de um determinado direito perante a insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar. Mas isso não importa qualquer distinção que justifique estender o regime de direitos, liberdades e garantias que são simplesmente análogos aos demais. Com efeito, se o legislador constituinte abriu uma distinção entre direitos, liberdades e garantias catalogados como tal entre os artigos 24 e 58 e, por outro lado, outros direitos dispersos pela constituição, o interprete não está autorizado a propagar os efeitos do art.º 17 da CRP muito para além daquele que é o seu sentido e alcance.
É que nesta linha, poderíamos continuar quase ilimitadamente, pois não haveria motivo algum para deixar de fora os direitos fundamentais reconhecidos a partir da cláusula aberta (art.º 16 nº1) que possuam analogia, quanto à sua natureza, com os restantes direitos, liberdades e garantias. Não podemos esquecer-nos que o texto constitucional abre as portas a um conceito material de direitos fundamentais. Temos direitos fundamentais simplesmente fundados na lei e no Direito Internacional. E entre estes, há muitos seguramente que apresentam natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Tornar extensivo o regime dos verdadeiros e próprios direitos, liberdades e garantias, sem mais, a outros direitos fundamentais, significa por em causa a própria ideia de fundamentalidade de alguns e não de todos os direitos protegidos pela ordem jurídica.
Deixando então esta questão, importante é também o requisito da urgência na resolução da causa. Este requisito deve ser entendido como estando preenchido apenas quando a falta de decisão implique ou uma grave lesão do direito ou uma inutilização do mesmo.
Este requisito deve ser conjugado com a exigência de que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar.
Quanto a este ponto, na opinião de Vieira de Andrade, esta exigência é algo pleonástica na medida em que se estabelece como um dos primeiros requisitos que seja necessária uma decisão de mérito. Ora, se é necessária uma decisão de mérito então o decretamento provisório de uma providência cautelar não será nunca suficiente – é que em sede de procedimento cautelar à partida não será resolvida a questão de fundo. Apesar de o decretamento provisório desta também pode ser conseguido em 48 horas, no entendimento do autor, sendo instrumentais e provisórias, as providencias cautelares não poderão ser utilizadas para obter resultados definitivos.
Vieira de Andrade encontra, no entanto, o efeito útil deste requisito, explicando que se consubstancia num meio de concretização do caráter urgente deste meio.
Por outro lado, o autor entende que esta exigência acentua o caráter subsidiário da intimação, remetendo para a ação administrativa normal o resto dos processos em que não seja urgente a decisão de fundo ou em que, apesar de ser, a menor celeridade não irá impedir o exercício do direito.
Questiona-se, no entanto, como deve ser concretizada esta subsidiariedade no que diz respeito à relação com o decretamento provisório de providências cautelares. É que, tendo em conta os objetivos desta intimação e o seu âmbito de aplicação, é de se entender que têm cenários de aplicação distintos. O problema coloca-se quando queremos precisar essa distinção. Além disto, atente-se que as diferenças entre o decretamento provisório e o processo de intimação não dizem respeito ao tempo – ambas asseguram o exercício do direito em 48 horas –, mas à necessidade de uma decisão de mérito.
Neste âmbito, Aroso de Almeida, chama também a atenção para esta dificuldade, explicando que se enquadrarão no âmbito da intimação situações em que o decretamento provisório, nos termos do art.º 131, não chega para “evitar a constituição de uma situação irreversível ou a emergência de danos de difícil reparação e em que, por conseguinte, existe uma situação de verdadeira urgência que justifica o recurso a esta forma de intimação.”
Para tal, o autor indica, numa primeira abordagem, a distinção entre as situações em que o decretamento de uma providência cautelar tem efeitos juridicamente irreversíveis e aquelas em que esta irreversibilidade é fáctica.
Na primeira hipótese, a adoção de uma providencia decide a questão de fundo, em causa na ação principal, esgotando-a e fazendo com que esta se torne, portanto inútil. É nestes casos que se justifica indubitavelmente o recurso à intimação – são os casos em que a decisão de decretamento provisório da providência, dada a urgência da causa e, por vezes, a especificação tempo em que é possível ou necessário exercer aquele direito, torna inútil tanto o processo cautelar como o processo principal. Como do próprio art.º 109 se retira, são situações em que há realmente a necessidade de se obter uma decisão de mérito, o mais rapidamente possível, e em que o direito em causa não pode ser reconhecido a título provisório ou precário.
No caso de o decretamento de uma providencia poder resultar na constituição de uma situação de irreversibilidade fáctica, Aroso de Almeida entende já não estar em causa a fronteira entre o processo urgente e a tutela cautelar. Aqui já será necessário recorrer aos critérios do art.º 120, relativos ao decretamento de uma providencia cautelar.
É no contexto destes problemas que, em 2015, o legislador nos faz chegar o art.º 110-A, conferindo ao juiz o poder de fixar um prazo para a substituição da petição de intimação por uma de providencia cautelar e podendo até, em situações extremas, decidir ele próprio pelo decretamento provisório de uma providência cautelar. Tudo isto é analisado num despacho liminar em que o juiz aprecia o preenchimento dos requisitos e verifica se não existirá outro meio processual mais adequado, devendo este despacho ser emitido no espaço de 48 horas, nos termos do art.º 110.
Esta era, também, uma questão que se colocava já desde os primeiros anos de aplicação do CPTA: a de saber até que ponto é que a falta do preenchimento deste requisito exigido para esta intimação não poderia determinar a convolação do processo de intimação num processo cautelar.
É que, à partida, poder-se-ia apontar aqui um desrespeito pelo princípio do dispositivo: a convolação para um processo cautelar obrigaria a que o titular do direito recorresse também a outro meio processual não urgente, como ação principal, sob pena de caducidade da providência cautelar (art.º 123 do CPTA).
No sentido contrário, invocou-se o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art.º 268 nº4 da CRP e no art.º 2 do CPTA. É que no fundo afigura-se lesivo deste princípio que o juiz constate que não está preenchido o último pressuposto do art.º 109 nº1 e que, portanto, deveria ser requerido o decretamento provisório de uma providência cautelar e, ainda, que estavam preenchidos os pressupostos deste último meio e, face a uma situação destas, de especial urgência, determinar simplesmente a absolvição da instância deste processo de intimação.
O legislador acabou, assim, por se decidir a favor desta possibilidade não dissipando, no entanto, as dúvidas sobre se estamos perante uma verdadeira convolação ou se estamos perante uma mera substituição de pedidos. Aqui é necessário precisar que nos termos do art.º 110 nº1 é ainda exigida uma atuação por parte do autor, para que substitua a petição inicial por um requerimento de providência cautelar. No entanto, no número subsequente não há dúvidas de que, nestes casos de “especial urgência” estamos perante, nada mais, nada menos do que uma convolação oficiosa do processo de intimação num processo cautelar.
Conclui-se, assim, que este processo de intimação para a proteção dos direitos, liberdades e garantias é um meio com alguns pontos controversos, mas que a pouco e pouco vão sendo resolvidos pela jurisprudência, pela doutrina e até pelo legislador. É de notar que no âmbito da revisão de 2015 houve uma clara extensão dos poderes do juiz neste processo de intimação, que garante uma melhor tutela destes direitos, liberdades e garantias, mas que talvez pudesse ter ido ainda mais longe.


[1] Veja-se Mário Aroso de Almeida in Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2016, p. 136 e, no mesmo sentido, Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, 15ª edição, Almedina, 2016.
[2]Por exemplo, o acórdão do TCA Norte de 26 de Janeiro de 2006.
[3] Vide, Jorge Miranda/Rui medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2010, p.308. Note-se, porém, que esta posição não é partilhada pelo co-autor Rui Medeiros. 

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