Os poderes de pronúncia do Tribunal- breve comentário ao acórdão de 21/02/2013 do Tribunal Central Administrativo Sul (processo nº 06303/10)
No
presente caso, a Autora, uma Advogada-Estagiária, repetiu o exame escrito
nacional de avaliação e agregação, tendo obtido nota negativa (oito valores em
vinte). Não se conformando com a classificação obtida, a Autora interpôs
recurso para a Comissão Nacional de Avaliação (CNA) da Ordem dos Advogados,
alegando que uma das questões do exame era contrária ao veiculado na nota
informativa da CNEF e CNA.
A
Secretária Geral do CD de Lisboa da Ordem dos Advogados vem, mais tarde,
notificar a Autora da improcedência do pedido de revisão, mantendo-se a nota
inalterada.
Perante
estas circunstâncias, a Autora intenta uma ação administrativa especial na qual
pede a anulação do ato que recusou provimento ao recurso de revisão do exame,
com a consequente atribuição da cotação total à questão que contrariava a nota
informativa do CNEF e CNA.
O
TAC de Lisboa julgou procedente a ação.
Nesta sequência, a OA
interpôs recurso jurisdicional da sentença do tribunal de 1ª instância para o
TCA Sul, alegando que não havia qualquer vício de violação de lei na elaboração
do exame; que a definição do conteúdo do exame respeitou a informação veiculada
pelo CNF; que o exame respeitou a nota
informativa da CNEF e CNA; que o TAC de Lisboa interpretou de forma errada a
norma do art.47º/2 do Regulamento Geral de; e que, ainda que se
entenda que o exame padece do invocado vício de violação de lei, nunca poderia
o tribunal determinar a realização de nova prova escrita pois, a matéria de
irregularidades na elaboração das provas não está sujeita a normas legais ou
regulamentares específicas, pelo que, neste âmbito, a Administração goza de
amplos poderes (limitados, claro, pela prossecução do interesse público no
respeito dos legítimos interesses dos candidatos, à luz dos princípios da
igualdade, justiça e proporcionalidade) para resolver os problemas que possam
surgir.
Quanto a este último ponto, salienta a OA que, embora o art.66º do Código
do Procedimento Administrativo (ora em diante, CPTA) permita a condenação da
Administração à prática de atos de conteúdo discricionário, há que ter em
atenção que o art. 71º/2 estabelece limites aos poderes de pronúncia do
tribunal, dado que, em matéria de discricionariedade, este apenas pode “(...) explicitar as vinculações a observar
pela Administração na emissão do ato devido”.
Tendo por base estas ideias, a OA conclui que o tribunal extravasou aqueles
poderes de pronúncia, entrando no âmbito da margem de livre discricionariedade
daquela, quando determinou que se realizasse um novo exame para a Autora.
Houve, assim, uma clara violação do disposto nos arts. 3º e 71º/2 do CPTA.
Por sua vez, o TCA Sul concluiu pela violação do
art.47º/2 do Regulamento Geral de Formação havendo, como tal, um direito à reparação
do erro. Ora, tratando-se de um erro grosseiro, não existiu qualquer
intromissão no poder discricionário da Administração que, aliás, podia vir a
errar de novo se o tribunal lhe concedesse a faculdade de resolver a questão. A
solução mais adequada seria, como já tinha referido a sentença recorrida, a repetição
da prova escrita pois, a distribuição da cotação pelas outras questões do teste
implicaria que o tribunal se substituisse ao avaliador, invadindo a sua área
técnica e gerando desigualdades entre examinandos.
Desta feita, negou provimento ao recurso,
considerando a interpretação dada pela OA ao art.71º/2 CPTA demasiado restritiva
e entendendo que não se extravasou os poderes de pronúncia do tribunal.
Tomando posição sobre o caso, cabe referir que não
estamos perante uma verdadeira sentença condenatória. Só seria assim se o
conteúdo do ato administrativo resultasse direta e expressamente da lei (o
conteúdo do ato teria que ser, portanto, vinculado) , ou, se o ato apenas
pudesse ter um sentido, isto é, um conteúdo (caso em que a margem de livre discricionariedade
estaria reduzida a zero). Estamos, antes, perante uma chamada “sentença-marco” ou, nas palavras do
Prof. Vasco Pereira da Silva, uma “sentença
indicativa” uma vez que o conteúdo do ato é indeterminado, estando em causa
escolhas da responsabilidade da Administração e ficando o tribunal limitado a
estabelecer parâmetros que a Administração terá de observar na prática do ato
devido, sem definir o conteúdo concreto do ato. Estamos, portanto, no âmbito da
margem de livre discricionariedade da Administração quanto à determinação do
conteúdo do ato, devendo o tribunal ficar-se pela “condenação genérica ou diretiva”[1].
Contudo, a verdadeira questão consiste em determinar
o alcance, nos casos em que o ato devido é de conteúdo discricionário, das
vinculações explicitadas pelo tribunal e que a Administração deve observar.
A propósito desta questão, há quem não se mostre tão
aberto às “indicações” dos tribunais como o Prof. Vasco Pereira da Silva,
dizendo que os amplos poderes conferidos pelo legislador no
art.71º/2 aos tribunais pode tornar o ato supostamente discricionário num ato
quase vinculado porquanto, em sede de execução da sentença, já estão determinados, por efeito das diretivas
de juridicidade e vinculações definidas
pelo juiz, os atos e as operações em que a execução deve consistir.
Por
esta ordem de ideias, para que o juiz se substituísse à Administração bastaria
que, na execução, a sentença funcionasse como substituto do ato dito
discricionário.[2]
Haveria,
assim, uma restrição da discricionariedade e da separação de poderes sempre que
a sentença fizer mais do que repetir a lei e explicitar os princípios gerais de
direito administrativo. De facto, nos casos em que o tribunal exponha as linhas
gerais a seguir pela Administração na prática do ato, está a determinar a própria
decisão administrativa, quanto ao seu conteúdo essencial, o que consubstancia
uma usurpação do exercício da função administrativa.
Por
outro lado, o controlo da administração pelos tribunais deixaria de ser só
externo para passar a ser também interno, pois, ao deixarmos os tribunais
conformar o conteúdo essencial do ato, estar-se-ia a a atribuir uma confiança
ilimitada à função jursidicional e às suas capacidades na orientação direta da
ação administrativa, relativamente a um caso concreto de ato devido.
Em
última análise, isto poderia levar à eliminaçao da discricionariedade
administrativa. Efetivamente, alegam os autores mais cépticos que, se já no
recurso contencioso de anulação/ação de anulação de países como a Alemanha,
ocorreram casos em que o tribunal conformou o conteúdo da decisão dita “discricionária”, então no contencioso administrativo
português, face ao art.71º/2, haverá casos, por não haver mais do que uma
solução possível, em que a margem de livre discricionariedade da Administração
ficaria reduzida a zero.
Da
mesma forma, tem sido realçado que os tribunais não têm a competência técnica
suficiente para resolver problemas de interesse público concreto, como tem a
Administração no âmbito da sua margem de livre discricionariedade.
Igualmente,
tem-se apontado que os tribunais não conseguiriam assumir a responsabilidade
decorrente da prática de atos com ampla margem de discricionariedade porque nem sequer estão sujeitos à
responsabilidade política a que a Administração está. A ser assim, estaríamos
perante uma autêntica deturpação do sistema de repartição de competências visto
que o tribunal acabaria por decidir aquilo que normalmente competiria à
Administração e, esta, por sua vez, dada a impossibilidade dos tribunais
assumirem a responsabilidade, teria que se responsabilizar pela decisão que, em
boa verdade, tendo em conta as vinculações estabelecidas pelo tribunal, se
limitou a cumprir.
No caso em apreço, estávamos, com efeito, no âmbito da margem de livre
discricionariedade da Administração, neste caso, a OA.
Malgrado não tomemos uma posição, salvo o devido respeito, tão extremista
como a que assume a Prof. Maria Francisca Portocarrero[3], a nosso ver, os tribunais
em causa não deveriam ter dado a solução concreta para o caso, por três ordens
de razão:
- Em primeiro lugar, a OA estava mais apta, em termos técnicos, para decidir, na medida em que se tratava de um assunto no qual era preciso ponderar as várias soluções possíveis, de forma a salvaguardar, simultaneamente, a igualdade entre os examinandos e a justiça do caso concreto;
- Em segundo lugar, quando está em causa o respeito pelo princípio da igualdade, o juiz, geralmente fica-se por uma atuação “negativa”, limitando-se a dizer o que pode ou não pode a Administração fazer;
- Em terceiro lugar, sendo este um caso em que a OA tinha ampla margem de discricionariedade (pois se há atividade discricionária é a de avaliar candidatos a advogados; atividade esta que pressupõe uma certa “discricionariedade optativa” ou “discricionariedade criativa”) e funcionando o art.71º/2 como limite aos poderes do tribunal, estabelecendo que, à exceção dos casos em que a margem de discricionariedade da Administração é inexistente, o tribunal só podia balizar a atuação da Administração na emissão do ato devido, isto é, só podia intervir no âmbito dos elementos vinculados do ato[4].
Desta feita, podemos concluir que, neste caso, os tribunais extravasaram claramente os seus poderes de
pronúncia quando conformaram, por completo, o conteúdo do ato e; em certa
medida, podemos afirmar que substituíram um juízo de valor que devia ter sido
da Administração pelo seu.
BIBLIOGRAFIA:
BIBLIOGRAFIA:
- Aroso
de Almeida, Mário, Manual de Processo
Administrativo, 2ª edição, Almedina.
- Pereira
da Silva, Vasco, O Contencioso
Administrativo no divã da psicanálise- Ensaio sobre as Ações no Novo Processo
Administrativo, 2ª edição, Almedina.
- Portocarrero,
Maria Francisca, Reflexões sobre os
poderes de pronúncia do triunal num novo meio contencioso- a ação para a
determinação da prática de ato administrativo legalmente devido- na sua
configuração no art.71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(CPTA), consultado em Revista da Ordem dos Advogados, Janeiro 2007.
- Sérvulo
Correia, José Manuel, Direito do Contencioso Administrativo I,
2005, Lex.
- Vieira de Andrade, José Carlos, A justiça administrativa (lições), 2ª
edição, Almedina.
[2] Sérvulo Correia, José Manuel, Direito do Contencioso
Administrativo I, 2005, Lex, p.153.
[3] Portocarrero, Maria Francisca, Reflexões sobre os poderes de pronúncia do
triunal num novo meio contencioso- a ação para a determinação da prática de ato
administrativo legalmente devido- na sua configuração no art.71º do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), consultado em Revista da
Ordem dos Advogados, Janeiro 2007, p.341 e ss.
[4] Seguimos
o Prof. Rogério Soares que entende que não há atos totalmente discricionários
nem atos totalmente vinculados.
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