Com
este trabalho propomo-nos a analisar brevemente três pontos do regime da
intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias que nos
suscitaram algumas dúvidas.
Em
primeiro lugar, cumpre precisar que as intimações são processos urgentes que
dão a oportunidade de, por via judicial, impor à Administração a adoção de
determinada conduta. Por questões de urgência na resolução e de necessidades de
celeridade este processo ao invés de seguir a tramitação normal caraterística
da ação administrativa, segue uma tramitação especial, em moldes mais
acelerados.
Em
segundo lugar, é necessário explicar também que este foi um meio que surgiu no Contencioso
Administrativo em 2002 e, mais importante, que nasceu com o intuito de
concretizar o disposto no art.º 20 nº 5 da Constituição, que nos diz que “para a
defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos
cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade,
de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações
desses direitos.”
No que diz respeito aos pressupostos exigidos
para o recurso a este meio processual, o nº1 do art.º 109 do CPTA estabelece
que este pode ser utilizado quando seja necessária a emissão célere de uma
decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva
ou negativa que seja indispensável para garantir o exercício deste direito, liberdade
ou garantia em tempo útil. Determina-se ainda que só poderá recorrer-se a esta
intimação quando o decretamento provisório de uma providência cautelar não
satisfaça estes requisitos.
Chegados
aqui, cumpre referir que, questão já mais antiga que a revisão de 2015, era a
de saber que direitos, liberdades e garantias entrariam no âmbito desta
intimação. É que, surgindo este meio como uma concretização do art.º 20 nº5 da
CRP, então só seria possível recorrer à intimação para a defesa de direitos
liberdades e garantias pessoais como,
por exemplo, o direito à vida, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.
Apesar disto, a doutrina[1], e também a jurisprudência[2], têm entendido que, apesar
de este processo se traduzir numa densificação do preceito constitucional, o
legislador conferiu a esta intimação um âmbito bastante mais alargado que, além
dos direitos liberdades e garantias pessoais em si mesmos, inclui no seu objeto
todos os outros direitos liberdades e garantias – de participação política e
dos trabalhadores - e até os direitos fundamentais de natureza análoga, art.º
17 da CRP.
Parece-nos,
no entanto, pouco razoável ir ao ponto de incluir estes últimos pois na verdade
não se trata de direitos, liberdades e garantias em sentido próprio. Quando, no
art.º 17 da CRP se estende o regime dos direitos, liberdades e garantias a
outros direitos fundamentais cuja natureza análoga com estes seja captada pelo
interprete, o legislador constituinte não está a determinar que cada referência
legal a direitos, liberdades e garantias tenha alcance a todos os similares.
Aquilo que resulta do art.º 17 é apenas e tão-só que outros direitos
fundamentais não compreendidos entre os artigos 24 e 58 da CRP beneficiam do
regime constitucional privativo dos direitos, liberdades e garantias,
designadamente em matéria de restrições (art.º 18 nº2 e nº3), de aplicação
imediata (art.º 18 nº2), de suspensão (art.º 19) e de outros. É mesmo duvidoso
que o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias (art.º 165 nº1 b))
deva também aplicar-se aos que apenas têm natureza análoga[3].
Um
dos casos incontroversos de direitos fundamentais com natureza análoga à dos
direitos, liberdades e garantias é o direito à fundamentação dos
administrativos lesivos (art.º 268 nº3). Não faria sentido admitir a intimação
dos artigos 109º e seguintes do CPTA justamente para a defesa de direitos
fundamentais que estão no cerne do direito processual administrativo geral. É
verdade que entre os pressupostos está a indispensabilidade para assegurar o
exercício em tempo útil de um determinado direito perante a insuficiência do
decretamento provisório de uma providência cautelar. Mas isso não importa
qualquer distinção que justifique estender o regime de direitos, liberdades e
garantias que são simplesmente análogos aos demais. Com efeito, se o legislador
constituinte abriu uma distinção entre direitos, liberdades e garantias
catalogados como tal entre os artigos 24 e 58 e, por outro lado, outros
direitos dispersos pela constituição, o interprete não está autorizado a
propagar os efeitos do art.º 17 da CRP muito para além daquele que é o seu
sentido e alcance.
É
que nesta linha, poderíamos continuar quase ilimitadamente, pois não haveria
motivo algum para deixar de fora os direitos fundamentais reconhecidos a partir
da cláusula aberta (art.º 16 nº1) que possuam analogia, quanto à sua natureza,
com os restantes direitos, liberdades e garantias. Não podemos esquecer-nos que
o texto constitucional abre as portas a um conceito material de direitos
fundamentais. Temos direitos fundamentais simplesmente fundados na lei e no
Direito Internacional. E entre estes, há muitos seguramente que apresentam natureza
análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Tornar extensivo o regime dos
verdadeiros e próprios direitos, liberdades e garantias, sem mais, a outros
direitos fundamentais, significa por em causa a própria ideia de
fundamentalidade de alguns e não de todos os direitos protegidos pela ordem
jurídica.
Deixando
então esta questão, importante é também o requisito da urgência na resolução da
causa. Este requisito deve ser entendido como estando preenchido apenas quando
a falta de decisão implique ou uma grave lesão do direito ou uma inutilização
do mesmo.
Este
requisito deve ser conjugado com a exigência de que não seja possível ou
suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar.
Quanto
a este ponto, na opinião de Vieira de
Andrade, esta exigência é algo pleonástica na medida em que se
estabelece como um dos primeiros requisitos que seja necessária uma decisão de
mérito. Ora, se é necessária uma decisão de mérito então o decretamento
provisório de uma providência cautelar não será nunca suficiente – é que em
sede de procedimento cautelar à partida não será resolvida a questão de fundo.
Apesar de o decretamento provisório desta também pode ser conseguido em 48
horas, no entendimento do autor, sendo instrumentais e provisórias, as providencias
cautelares não poderão ser utilizadas para obter resultados definitivos.
Vieira de Andrade encontra, no entanto, o
efeito útil deste requisito, explicando que se consubstancia num meio de concretização
do caráter urgente deste meio.
Por
outro lado, o autor entende que esta exigência acentua o caráter subsidiário da
intimação, remetendo para a ação administrativa normal o resto dos processos em
que não seja urgente a decisão de fundo ou em que, apesar de ser, a menor
celeridade não irá impedir o exercício do direito.
Questiona-se,
no entanto, como deve ser concretizada esta subsidiariedade no que diz respeito
à relação com o decretamento provisório de providências cautelares. É que,
tendo em conta os objetivos desta intimação e o seu âmbito de aplicação, é de
se entender que têm cenários de aplicação distintos. O problema coloca-se
quando queremos precisar essa distinção. Além disto, atente-se que as
diferenças entre o decretamento provisório e o processo de intimação não dizem
respeito ao tempo – ambas asseguram o exercício do direito em 48 horas –, mas à
necessidade de uma decisão de mérito.
Neste
âmbito, Aroso de Almeida, chama
também a atenção para esta dificuldade, explicando que se enquadrarão no âmbito
da intimação situações em que o decretamento provisório, nos termos do art.º
131, não chega para “evitar a constituição de uma situação irreversível ou a
emergência de danos de difícil reparação e em que, por conseguinte, existe uma
situação de verdadeira urgência que justifica o recurso a esta forma de
intimação.”
Para
tal, o autor indica, numa primeira abordagem, a distinção entre as situações em
que o decretamento de uma providência cautelar tem efeitos juridicamente irreversíveis
e aquelas em que esta irreversibilidade é fáctica.
Na
primeira hipótese, a adoção de uma providencia decide a questão de fundo, em
causa na ação principal, esgotando-a e fazendo com que esta se torne, portanto
inútil. É nestes casos que se justifica indubitavelmente o recurso à intimação –
são os casos em que a decisão de decretamento provisório da providência, dada a
urgência da causa e, por vezes, a especificação tempo em que é possível ou necessário
exercer aquele direito, torna inútil tanto o processo cautelar como o processo
principal. Como do próprio art.º 109 se retira, são situações em que há
realmente a necessidade de se obter uma decisão de mérito, o mais rapidamente
possível, e em que o direito em causa não pode ser reconhecido a título
provisório ou precário.
No
caso de o decretamento de uma providencia poder resultar na constituição de uma
situação de irreversibilidade fáctica, Aroso
de Almeida entende já não estar em causa a fronteira entre o processo
urgente e a tutela cautelar. Aqui já será necessário recorrer aos critérios do
art.º 120, relativos ao decretamento de uma providencia cautelar.
É
no contexto destes problemas que, em 2015, o legislador nos faz chegar o art.º
110-A, conferindo ao juiz o poder de fixar um prazo para a substituição da
petição de intimação por uma de providencia cautelar e podendo até, em situações
extremas, decidir ele próprio pelo decretamento provisório de uma providência
cautelar. Tudo isto é analisado num despacho liminar em que o juiz aprecia o
preenchimento dos requisitos e verifica se não existirá outro meio processual
mais adequado, devendo este despacho ser emitido no espaço de 48 horas, nos
termos do art.º 110.
Esta
era, também, uma questão que se colocava já desde os primeiros anos de
aplicação do CPTA: a de saber até que ponto é que a falta do preenchimento deste
requisito exigido para esta intimação não poderia determinar a convolação do
processo de intimação num processo cautelar.
É
que, à partida, poder-se-ia apontar aqui um desrespeito pelo princípio do
dispositivo: a convolação para um processo cautelar obrigaria a que o titular
do direito recorresse também a outro meio processual não urgente, como ação
principal, sob pena de caducidade da providência cautelar (art.º 123 do CPTA).
No
sentido contrário, invocou-se o princípio da tutela jurisdicional efetiva,
consagrado no art.º 268 nº4 da CRP e no art.º 2 do CPTA. É que no fundo
afigura-se lesivo deste princípio que o juiz constate que não está preenchido o
último pressuposto do art.º 109 nº1 e que, portanto, deveria ser requerido o
decretamento provisório de uma providência cautelar e, ainda, que estavam
preenchidos os pressupostos deste último meio e, face a uma situação destas, de
especial urgência, determinar simplesmente a absolvição da instância deste
processo de intimação.
O
legislador acabou, assim, por se decidir a favor desta possibilidade não
dissipando, no entanto, as dúvidas sobre se estamos perante uma verdadeira
convolação ou se estamos perante uma mera substituição de pedidos. Aqui é
necessário precisar que nos termos do art.º 110 nº1 é ainda exigida uma atuação
por parte do autor, para que substitua a petição inicial por um requerimento de
providência cautelar. No entanto, no número subsequente não há dúvidas de que,
nestes casos de “especial urgência” estamos perante, nada mais, nada menos do
que uma convolação oficiosa do processo de intimação num processo cautelar.
Conclui-se,
assim, que este processo de intimação para a proteção dos direitos, liberdades
e garantias é um meio com alguns pontos controversos, mas que a pouco e pouco
vão sendo resolvidos pela jurisprudência, pela doutrina e até pelo legislador.
É de notar que no âmbito da revisão de 2015 houve uma clara extensão dos
poderes do juiz neste processo de intimação, que garante uma melhor tutela
destes direitos, liberdades e garantias, mas que talvez pudesse ter ido ainda
mais longe.
[1] Veja-se
Mário Aroso de Almeida in Manual de Processo Administrativo, 2ª edição,
Almedina, 2016, p. 136 e, no mesmo sentido, Vieira de Andrade in A Justiça
Administrativa, 15ª edição, Almedina, 2016.
[2]Por
exemplo, o acórdão do TCA Norte de 26 de Janeiro de 2006.
[3] Vide, Jorge
Miranda/Rui medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição,
Coimbra, 2010, p.308. Note-se, porém, que esta posição não é partilhada pelo
co-autor Rui Medeiros.