segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A INTIMAÇÃO PARA A PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS: BREVES NOTAS


Com este trabalho propomo-nos a analisar brevemente três pontos do regime da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias que nos suscitaram algumas dúvidas.
Em primeiro lugar, cumpre precisar que as intimações são processos urgentes que dão a oportunidade de, por via judicial, impor à Administração a adoção de determinada conduta. Por questões de urgência na resolução e de necessidades de celeridade este processo ao invés de seguir a tramitação normal caraterística da ação administrativa, segue uma tramitação especial, em moldes mais acelerados.
Em segundo lugar, é necessário explicar também que este foi um meio que surgiu no Contencioso Administrativo em 2002 e, mais importante, que nasceu com o intuito de concretizar o disposto no art.º 20 nº 5 da Constituição, que nos diz que “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”
 No que diz respeito aos pressupostos exigidos para o recurso a este meio processual, o nº1 do art.º 109 do CPTA estabelece que este pode ser utilizado quando seja necessária a emissão célere de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que seja indispensável para garantir o exercício deste direito, liberdade ou garantia em tempo útil. Determina-se ainda que só poderá recorrer-se a esta intimação quando o decretamento provisório de uma providência cautelar não satisfaça estes requisitos.
Chegados aqui, cumpre referir que, questão já mais antiga que a revisão de 2015, era a de saber que direitos, liberdades e garantias entrariam no âmbito desta intimação. É que, surgindo este meio como uma concretização do art.º 20 nº5 da CRP, então só seria possível recorrer à intimação para a defesa de direitos liberdades e garantias pessoais como, por exemplo, o direito à vida, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Apesar disto, a doutrina[1], e também a jurisprudência[2], têm entendido que, apesar de este processo se traduzir numa densificação do preceito constitucional, o legislador conferiu a esta intimação um âmbito bastante mais alargado que, além dos direitos liberdades e garantias pessoais em si mesmos, inclui no seu objeto todos os outros direitos liberdades e garantias – de participação política e dos trabalhadores - e até os direitos fundamentais de natureza análoga, art.º 17 da CRP.
Parece-nos, no entanto, pouco razoável ir ao ponto de incluir estes últimos pois na verdade não se trata de direitos, liberdades e garantias em sentido próprio. Quando, no art.º 17 da CRP se estende o regime dos direitos, liberdades e garantias a outros direitos fundamentais cuja natureza análoga com estes seja captada pelo interprete, o legislador constituinte não está a determinar que cada referência legal a direitos, liberdades e garantias tenha alcance a todos os similares. Aquilo que resulta do art.º 17 é apenas e tão-só que outros direitos fundamentais não compreendidos entre os artigos 24 e 58 da CRP beneficiam do regime constitucional privativo dos direitos, liberdades e garantias, designadamente em matéria de restrições (art.º 18 nº2 e nº3), de aplicação imediata (art.º 18 nº2), de suspensão (art.º 19) e de outros. É mesmo duvidoso que o regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias (art.º 165 nº1 b)) deva também aplicar-se aos que apenas têm natureza análoga[3].
Um dos casos incontroversos de direitos fundamentais com natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias é o direito à fundamentação dos administrativos lesivos (art.º 268 nº3). Não faria sentido admitir a intimação dos artigos 109º e seguintes do CPTA justamente para a defesa de direitos fundamentais que estão no cerne do direito processual administrativo geral. É verdade que entre os pressupostos está a indispensabilidade para assegurar o exercício em tempo útil de um determinado direito perante a insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar. Mas isso não importa qualquer distinção que justifique estender o regime de direitos, liberdades e garantias que são simplesmente análogos aos demais. Com efeito, se o legislador constituinte abriu uma distinção entre direitos, liberdades e garantias catalogados como tal entre os artigos 24 e 58 e, por outro lado, outros direitos dispersos pela constituição, o interprete não está autorizado a propagar os efeitos do art.º 17 da CRP muito para além daquele que é o seu sentido e alcance.
É que nesta linha, poderíamos continuar quase ilimitadamente, pois não haveria motivo algum para deixar de fora os direitos fundamentais reconhecidos a partir da cláusula aberta (art.º 16 nº1) que possuam analogia, quanto à sua natureza, com os restantes direitos, liberdades e garantias. Não podemos esquecer-nos que o texto constitucional abre as portas a um conceito material de direitos fundamentais. Temos direitos fundamentais simplesmente fundados na lei e no Direito Internacional. E entre estes, há muitos seguramente que apresentam natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Tornar extensivo o regime dos verdadeiros e próprios direitos, liberdades e garantias, sem mais, a outros direitos fundamentais, significa por em causa a própria ideia de fundamentalidade de alguns e não de todos os direitos protegidos pela ordem jurídica.
Deixando então esta questão, importante é também o requisito da urgência na resolução da causa. Este requisito deve ser entendido como estando preenchido apenas quando a falta de decisão implique ou uma grave lesão do direito ou uma inutilização do mesmo.
Este requisito deve ser conjugado com a exigência de que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar.
Quanto a este ponto, na opinião de Vieira de Andrade, esta exigência é algo pleonástica na medida em que se estabelece como um dos primeiros requisitos que seja necessária uma decisão de mérito. Ora, se é necessária uma decisão de mérito então o decretamento provisório de uma providência cautelar não será nunca suficiente – é que em sede de procedimento cautelar à partida não será resolvida a questão de fundo. Apesar de o decretamento provisório desta também pode ser conseguido em 48 horas, no entendimento do autor, sendo instrumentais e provisórias, as providencias cautelares não poderão ser utilizadas para obter resultados definitivos.
Vieira de Andrade encontra, no entanto, o efeito útil deste requisito, explicando que se consubstancia num meio de concretização do caráter urgente deste meio.
Por outro lado, o autor entende que esta exigência acentua o caráter subsidiário da intimação, remetendo para a ação administrativa normal o resto dos processos em que não seja urgente a decisão de fundo ou em que, apesar de ser, a menor celeridade não irá impedir o exercício do direito.
Questiona-se, no entanto, como deve ser concretizada esta subsidiariedade no que diz respeito à relação com o decretamento provisório de providências cautelares. É que, tendo em conta os objetivos desta intimação e o seu âmbito de aplicação, é de se entender que têm cenários de aplicação distintos. O problema coloca-se quando queremos precisar essa distinção. Além disto, atente-se que as diferenças entre o decretamento provisório e o processo de intimação não dizem respeito ao tempo – ambas asseguram o exercício do direito em 48 horas –, mas à necessidade de uma decisão de mérito.
Neste âmbito, Aroso de Almeida, chama também a atenção para esta dificuldade, explicando que se enquadrarão no âmbito da intimação situações em que o decretamento provisório, nos termos do art.º 131, não chega para “evitar a constituição de uma situação irreversível ou a emergência de danos de difícil reparação e em que, por conseguinte, existe uma situação de verdadeira urgência que justifica o recurso a esta forma de intimação.”
Para tal, o autor indica, numa primeira abordagem, a distinção entre as situações em que o decretamento de uma providência cautelar tem efeitos juridicamente irreversíveis e aquelas em que esta irreversibilidade é fáctica.
Na primeira hipótese, a adoção de uma providencia decide a questão de fundo, em causa na ação principal, esgotando-a e fazendo com que esta se torne, portanto inútil. É nestes casos que se justifica indubitavelmente o recurso à intimação – são os casos em que a decisão de decretamento provisório da providência, dada a urgência da causa e, por vezes, a especificação tempo em que é possível ou necessário exercer aquele direito, torna inútil tanto o processo cautelar como o processo principal. Como do próprio art.º 109 se retira, são situações em que há realmente a necessidade de se obter uma decisão de mérito, o mais rapidamente possível, e em que o direito em causa não pode ser reconhecido a título provisório ou precário.
No caso de o decretamento de uma providencia poder resultar na constituição de uma situação de irreversibilidade fáctica, Aroso de Almeida entende já não estar em causa a fronteira entre o processo urgente e a tutela cautelar. Aqui já será necessário recorrer aos critérios do art.º 120, relativos ao decretamento de uma providencia cautelar.
É no contexto destes problemas que, em 2015, o legislador nos faz chegar o art.º 110-A, conferindo ao juiz o poder de fixar um prazo para a substituição da petição de intimação por uma de providencia cautelar e podendo até, em situações extremas, decidir ele próprio pelo decretamento provisório de uma providência cautelar. Tudo isto é analisado num despacho liminar em que o juiz aprecia o preenchimento dos requisitos e verifica se não existirá outro meio processual mais adequado, devendo este despacho ser emitido no espaço de 48 horas, nos termos do art.º 110.
Esta era, também, uma questão que se colocava já desde os primeiros anos de aplicação do CPTA: a de saber até que ponto é que a falta do preenchimento deste requisito exigido para esta intimação não poderia determinar a convolação do processo de intimação num processo cautelar.
É que, à partida, poder-se-ia apontar aqui um desrespeito pelo princípio do dispositivo: a convolação para um processo cautelar obrigaria a que o titular do direito recorresse também a outro meio processual não urgente, como ação principal, sob pena de caducidade da providência cautelar (art.º 123 do CPTA).
No sentido contrário, invocou-se o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art.º 268 nº4 da CRP e no art.º 2 do CPTA. É que no fundo afigura-se lesivo deste princípio que o juiz constate que não está preenchido o último pressuposto do art.º 109 nº1 e que, portanto, deveria ser requerido o decretamento provisório de uma providência cautelar e, ainda, que estavam preenchidos os pressupostos deste último meio e, face a uma situação destas, de especial urgência, determinar simplesmente a absolvição da instância deste processo de intimação.
O legislador acabou, assim, por se decidir a favor desta possibilidade não dissipando, no entanto, as dúvidas sobre se estamos perante uma verdadeira convolação ou se estamos perante uma mera substituição de pedidos. Aqui é necessário precisar que nos termos do art.º 110 nº1 é ainda exigida uma atuação por parte do autor, para que substitua a petição inicial por um requerimento de providência cautelar. No entanto, no número subsequente não há dúvidas de que, nestes casos de “especial urgência” estamos perante, nada mais, nada menos do que uma convolação oficiosa do processo de intimação num processo cautelar.
Conclui-se, assim, que este processo de intimação para a proteção dos direitos, liberdades e garantias é um meio com alguns pontos controversos, mas que a pouco e pouco vão sendo resolvidos pela jurisprudência, pela doutrina e até pelo legislador. É de notar que no âmbito da revisão de 2015 houve uma clara extensão dos poderes do juiz neste processo de intimação, que garante uma melhor tutela destes direitos, liberdades e garantias, mas que talvez pudesse ter ido ainda mais longe.


[1] Veja-se Mário Aroso de Almeida in Manual de Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2016, p. 136 e, no mesmo sentido, Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, 15ª edição, Almedina, 2016.
[2]Por exemplo, o acórdão do TCA Norte de 26 de Janeiro de 2006.
[3] Vide, Jorge Miranda/Rui medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2010, p.308. Note-se, porém, que esta posição não é partilhada pelo co-autor Rui Medeiros. 

Os Modelos Objectivista e Subjectivista de Justiça Administrativa

                       Os Modelos Objectivista e Subjectivista de Justiça Administrativa

O Professor Vasco Pereira da Silva, ao analisar a evolução histórica do contencioso administrativo, subdivide-a, muito ao seu estilo psicanalítico, em três fases distintas: a fase do pecado original (que tem o seu início com a revolução francesa, em 1789, e dura até à transição do século XIX para o século XX); a fase do baptismo (que vai durar até aos anos 70); e, finalmente, a fase do crisma ou fase da confirmação, que o Professor subdivide em dois momentos: a fase da constitucionalização, e a fase da europeização (que tem início nos anos 90, com a formação da União Europeia).
Ao analisar estas fases, verificamos que o Contencioso Administrativo nasceu e fez-se de acordo com a concepção objectivista de justiça administrativa, mas que foi progredindo ao encontro da concepção subjectivista de justiça administrativa, sendo que hoje nos encontramos perante um modelo subjectivista impuro de justiça administrativa, já que ainda subsistem vincadas marcas objectivistas neste ramo de Direito.
Passaremos à análise da diferenciação entre estas duas concepções de justiça administrativa.
A principal distinção entre estes dois modelos reside na visão que têm da função do contencioso administrativo: enquanto o modelo objectivista, mais autoritário, fundado no pensamento do Estado liberal “forte” defende que o contencioso administrativo deve ter como principal função a defesa da legalidade e do interesse público, submetendo os interesses individuais ao interesse das massas; o modelo subjectivista coloca a tutela dos dos direitos e posições jurídicas individualizadas dos particulares no centro da função do contencioso administrativo, já que são os particulares, em virtude de não possuírem o ius imperii do Estado, a parte mais fraca, que necessita de ser justamente tutelada para assegurar o interesse público.
No que diz respeito ao objecto do processo, a concepção objectivista da justiça administrativa considera que este se centra no acto administrativo ou na legitimidade do exercício do poder administrativo; enquanto a concepção subjectivista entende que o objecto do processo deve ser a lesão das posições jurídicas subjectivas dos interessados.
Quanto à entidade competente para o controlo da aplicação da justiça administrativa surge um dos mais reveladores pontos de discórdia destes dois modelos: o modelo objectivista vai defender que esta deve ser uma autoridade administrativa, na linha da fundação do Contencioso Administrativo, manifestação do grande pecado original: o administrador-juiz; enquanto o modelo subjectivista vai defender que quem deve controlar a aplicação da justiça administrativa deve ser um juiz propriamente dito, ou seja, independente da Administração Pública. Este grande ponto de discórdia surge de uma grande divergência quanto ao princípio da separação de poderes: já que na revolução francesa, com a fundação do contencioso administrativo, entendeu-se, de acordo com a concepção objectivista, que quem iria aplicar a justiça administrativa deveria integrar a Administração, considerando-se que uma intervenção do poder judicial sobre o poder executivo seria uma violação inaceitável do princípio da separação de poderes. Hoje, porém, e ao encontro da concepção objectivista, que a aplicação de toda a justiça deve pertencer ao poder judicial, e que isso não prejudica a separação de poderes, mas é seu pressuposto, também para assegurar o sistema de checks and balances que este princípio pretende proteger.
Assim sendo, os objectivistas considerariam que o juiz-administrador teria pouco mais poder na aplicação da justiça administrativa para além de determinar a anulação de actos administrativos ilegais; enquanto os objectivistas atribuem plena jurisdição ao juiz que aplica a justiça administrativa.
Em suma, podemos concluir que a concepção objectivista da justiça administrativa tem uma visão mais estrita desta, absolutamente ligada ao princípio da legalidade, sobrepondo o interesse público ao interesse dos particulares e a eficácia executiva de uma administração que se controla a si própria às posições jurídicas subjectivas dos particulares. Já a concepção subjectivista coloca a pessoa humana no centro da justiça administrativa, reconhecendo que a melhor prossecução do interesse público reside na garantia da tutela dos direitos e posições jurídicas subjectivas dos particulares.

Bibliografia:
José Carlos Vieira de Andrade, "A Justiça Administrativa", Almedina, 15ª edição;
Vasco Pereira da Silva, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Almedina, 2ª edição;
Vasco Pereira da Silva, "Em Busca do Acto Administrativo Perdido", Almedina, Coimbra, 1996.

O Silêncio da Administração na Condenação à Prática de Acto Devido



Num Ordenamento Jurídico como o Português que tem uma das linhas fundamentais do sistema o respeito pela democracia seria de esperar que a Relação jurídica estabelecida entre o Estado e os Cidadãos fosse desenvolvida livre de quaisquer percalços. Contudo esse não é o caso, muitas vezes a Administração Pública pode ferir os interesses de um particular, a título incidental ou deliberado, resultando numa quebra de confiança do cidadão na própria Administração, mas este particular não se encontra desprovido de formas de protecção dos actos administrativos sendo que um dos meios ao seu dispor é a condenação da Administração Pública à prática de ato devido.
Este meio configura-se como uma acção administrativa especial, o particular passa a ter uma ferramenta para sindicar junto dos tribunais administrativos a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado (artigo 66º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA).
A Administração vai ser condenada a praticar o ato devido que corresponde ao ato administrativo que, do ponto de vista do autor, deveria ter sido emitido e não foi, pois houve uma omissão, uma recusa ou quando o ato praticado não satisfez a pretensão do autor.

Por conseguinte, condenar a Administração à prática de actos administrativos devidos corresponde à tarefa de julgar e configura situação distinta da circunstância de o tribunal praticar atos em vez da Administração, invadindo o domínio da discricionariedade administrativa, que corresponde à tarefa de administrar. Só neste último caso se pode falar em violação do princípio da separação de poderes. Seguindo a linguagem do Autor, com a consagração deste tipo de ação, assistiu-se à superação dos “traumas da infância difícil do contencioso administrativo”.
A consagração da possibilidade de “interpelar a Administração a cumprir”, obtendo a sua condenação à prática de ato administrativo passou, por conseguinte, a estar prevista na Constituição, permitindo aos particulares ir mais além do que o mero reconhecimento do seu direito.

Concretizando o artigo 268.º n.º 4 da Constituição, o CPTA, nos seus artigos 68.º e seguintes, confere aos tribunais administrativos o poder de procederem à determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos – mais concretamente, à condenação à prática desses actos.
O foco deste ensaio não será a condenação ao ato administrativo devido mas sim o pressuposto do silêncio ou decisão negativa perante o requerimento apresentado, e para tal irei apresentar as várias hipóteses em que o particular pode pedir a condenação da Administração na prática do ato devido tal como se apresentam no artigo 67 nº1.
O primeiro desses casos é o enunciado pela alínea a do nº1 do artigo 67 onde a Administração Pública aquando da apresentação de um requerimento pelo particular para a prática desse ato seguido de uma omissão por parte da Administração, sem que qualquer decisão tenha sido tomada, até expirar o prazo legalmente fixado para a tomada dessa decisão, ou seja o mecanismo em causa tem por alvo as situações de incumprimento por parte da Administração de um dever de decisão que lhe fora incumbido.

Pode-se levantar a questão de saber quando é que se constitui o dever de decisão do órgão competente, cuja resposta encontramos no artigo 13º do Código de Processo Administrativo (CPA), e que nos diz “Os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam directamente respeito, bem como sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis ou do interesse público”. Sendo que está exonerado deste dever nos casos do 13º nº2 do CPA quando já tenha praticado um ato sobre o mesmo pedido em menos de 2 anos.

Não se colocando a excepção acima enunciada estaríamos perante um caso de “indeferimento tácito”, nos termos do artigo 109º do antigo Código. Contudo este artigo foi revogado, sendo substituído pelos artigos 128 e 129 que dispõe nomeadamente no artigo 128º o prazo legal para a pronúncia da Administração sobre um requerimento que lhe tenha sido solicitado em 90 disse que uma vez expirado, como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, confere ao lesado a possibilidade de reagir contra esta inércia administrativa fazendo valer o seu direito em juízo. E no artigo 129º refere que uma vez incumprido o prazo legal estaremos sob um caso de omissão pura e simples (com ressalva aos casos em que a lei associa ao incumprimento do prazo outro efeito).  

É então claro que o regime do artigo 67º nº1 alínea a do CPTA visa dar uma resposta ao interessado que se viu privado de uma decisão da Administração.

Em relação ao segundo meio de tutela, este encontra-se previsto na alínea b do nº1 do artigo 67 do CPTA e que tem por base os casos de indeferimento do requerimento.

Nestes casos quando o particular se veja confrontado com um indeferimento por parte da Assembleia este não terá que deduzir contra esse ato um pedido de anulação ou de declaração de nulidade, como nos explica o Professor Mário Aroso de Almeida. Na verdade não terá que, por via do artigo 51 nº4, deduzir qualquer pedido nesses moldes mas deverá fazê-lo no âmbito do processo de condenação de ato administrativo.
           
Outro caso previsto nesta alínea é o da recusa de apreciação do requerimento por parte da Administração Pública. È de notar que este artigo autonomiza as situações em que o órgão competente profere um ato negativo daquele em que se recusa a apreciar o requerimento de todo. E leva-nos a aprofundar ainda amais a tutela do interessado uma vez que pode fazer valer o seu direitos alegando a inexistência de questões formais e/ou materiais que levem à recusa de apreciação do requerimento.
           
Finalmente resta apreciar a hipótese contida na alínea c e que nos expõe ao caso de a Administração Pública ter praticado um ato administrativo que não satisfaça integralmente a pretensão deduzida pelo autor, caracterizando-se por uma caso de indeferimento parcial. Aqui Mário Aroso de Almeida elabora a ideia de que caso a Administração Pública pratique um ato desfavorável ao interesse do Autor da acção, este último deve ter oportunidade de se poder defender da lesão aos seus interesses e poder finalmente obter o beneficio que procurava da decisão.

Em suma, considero que o particular no âmbito de uma acção de condenação de Contencioso Administrativo se encontra muito bem protegido fruto de regime altamente abrangente do artigo 67º do CPTA que o protege contra o "silêncio" da Administração Pública, e que o fortalece na relação com esse mesmo órgão. 



ALMEIDA, Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2016, 2ª edição (reimpressão);
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2008.

A Arbitragem Administrativa: Enquadramento, Âmbito e Regime

Como sabemos, o processo administrativo não se desenvolve apenas perante Tribunais Administrativos que integram a estrutura primária dos tribunais do Estado, desenvolvendo-se igualmente perante tribunais arbitrais. Assim sendo, ao contrário do que podemos verificar noutros países, a arbitragem sobre litígios administrativos encontra-se em franca expansão, em parte devido à sua tradição, na ordem jurídica portuguesa.
O reconhecimento de que se podem constituir tribunais arbitrais para a resolução de assuntos administrativos, no que concerne à interpretação, validade ou execução de contratos e à constituição por via da responsabilidade civil por danos causados pela Administração no âmbito da sua atividade de gestão pública, é desde há muito pacífico na nossa ordem jurídica, não vigorando assim em Portugal, uma reserva de jurisdição estadual, no respeitante aos litígios relacionados com a Administração Pública.
O art. 209.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), ao estatuir as “categorias de tribunais” admitidas na ordem jurídica portuguesa, refere no seu n.º2 os tribunais arbitrais, o que nos permite aferir que a CRP não se limita a assumir a admissibilidade do recurso à arbitragem como uma forma normal de resolução de conflitos jurídicos, indo mais longe, ao consagrar, inequivocamente, a natureza jurisdicional dos tribunais arbitrais, da atividade que estes se propõem a desempenhar e, deste modo, das decisões por estes proferidas.
Através da conjugação dos arts. 211.º e 212.º/3 verificamos que para o tema em mãos estes têm que ser interpretados em harmonia com o art. 209.º/2, com o fim de se reconhecer que este só confere poderes de jurisdição aos Tribunais Administrativos do Estado sob reserva da existência de tribunais arbitrais e, assim sendo, da possibilidade da sua intervenção, com a extensão que ao legislador cumpre delimitar no exercício da sua função.
Pelo art. 212.º/3 da CRP, os tribunais administrativos não são, em Portugal, apenas os tribunais permanentes do Estado, mas também os Tribunais Administrativos Arbitrais que venham a ser constituídos de modo a resolver litígios jurídico-administrativos.
Cumpre-nos agora verificar o âmbito da arbitragem administrativa relativamente à Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), sendo que conforme estabelece o seu art. 2.º/4, “o Estado e outras pessoas coletivas de Direito Público podem celebrar convenções de arbitragem na medida em que para tal estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objeto litígios de direito privado”.
A este propósito, o primeiro aspeto que carece de análise é o facto de deste preceito resultar claramente a arbitrabilidade (sendo que este termo tem por objeto exprimir a qualidade dos litígios que podem ser submetidos a arbitragem, de modo a poderem ser validamente celebradas convenções de arbitragem, serem constituídos tribunais arbitrais e esses tribunais proferirem decisões), por aplicação direta do regime da LAV, dos litígios decorrentes de gestão privada dos entes públicos, relativas a relações de Direito Privado.
De referir que no diz respeito aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, não existe uma norma de permissão geral da arbitragem em matéria administrativa, dependendo a concretização de convenções arbitrais da existência de lei que permita a sua celebração.
Logo, verificamos que daqui resulta que a admissibilidade da arbitragem em matéria administrativa não resulta do critério geral de arbitrabilidade que, para os litígios de Direito Privado, resulta do art. 2.º/2 da LAV, sendo que é ao legislador que compete eleger o critério ou critérios que o orientarão na identificação  dos casos concretos ou dos domínios genéricos em que entenda dever autorizar a submissão da resolução de litígios de Direito Público à decisão de árbitros.
É ao Direito Administrativo que, em diploma ou diplomas próprios, cumpre definir um regime próprio no respeitante aos critérios de arbitrabilidade a adotar no âmbito das relações jurídicas administrativas. Naturalmente, a LAV não se pronuncia sobre esta questão, cuja sede própria reside nas disposições de Direito Administrativo.
Até 2004, a matéria da arbitrabilidade de Direito Administrativo era regulada no art. 2.º/2 do ETAF de 1984, nos termos do qual só eram admitidos tribunais arbitrais “no domínio do contencioso dos contratos administrativos e da responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de atos de gestão publica, incluindo o contencioso das ações de regresso”.
Inerente a esta solução, tínhamos o entendimento de que as matérias de Direito Administrativo passíveis de serem submetidas à arbitragem deviam ser delimitadas por referência a um vago critério de disponibilidade, de acordo com o qual poderiam ser submetidas à resolução por árbitros as questões que, por não respeitarem ao exercício de poderes públicos, não têm de ser dirimidas por estrita aplicação de disposições legais.
No âmbito do regime deste artigo, era discutida na doutrina a questão da admissibilidade da arbitragem sobre o exercício de poderes de autoridade da Administração. Em conformidade com este critério, era tradicionalmente vedada a arbitragem no exercício de poderes de autoridade da Administração.
Contudo, havia quem na Doutrina defendesse que mesmo no âmbito do exercício de poderes de autoridade da Administração, só seria nos domínios de estrita vinculação legal que as situações jurídicas estariam subtraídas à disponibilidade da Administração, pelo que seria de admitir a possibilidade de arbitragem sobre o próprio exercício de poderes e autoridade da Administração, desde que limitada a domínios de discricionariedade administrativa.
Atualmente, o CPTA regula este tema no Título VIII, a que correspondem os arts. 180.º a 187.º , existindo agora no nosso ordenamento jurídico um regime do qual resulta uma permissão genérica, por categorias de matérias, do recurso à arbitragem em matérias de Direito Administrativo.
Conforme dispõe o n.º1 do presente artigo, pode ser constituído um tribunal arbitral para o julgamento, tanto de questões relativas a contratos, como de questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, incluindo a efetivação do direito de regresso.
Com a revisão de 2015, o art. 180.º/1, b) estendeu o âmbito da arbitrabilidade às questões respeitantes a “indemnizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas”, ainda que estas indemnizações não se fundem na aplicação do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Concluímos assim que existiu, na arbitragem administrativa uma mudança de paradigma decorrente da consagração da regra da admissibilidade da submissão à arbitragem de qualquer litígio no domínio da fiscalização da legalidade de atos administrativos.
Temos assim uma perspetiva de evolução introduzida, parcialmente, pelo art. 187.º com a previsão da possibilidade da existência de arbitragem administrativa institucionalizada no nosso ordenamento jurídico, tendo primeiramente em visa a abertura da arbitragem, que o CPTA encetou de modo precursor, à apreciação de litígios sobre questões de legalidade de atos administrativos, sendo que o Estado pode reconhecer a centros de arbitragem institucionalizada já existentes a possibilidade de funcionarem igualmente como centros de arbitragem de litígios de natureza administrativa, mediante o preenchimento de determinados requisitos.

Bibliografia: 
-AROSO DE ALMEIDA, Mário, Manual de Processo Administrativo, 2ª ed., Almedina, 2016

Carta a Agnès Blanco

Querida Agnès, ou Agnese ou Inês,

No século XXI não és apenas uma pequena rapariga francesa; No século XXI és Agnese, Inês e tantos outros nomes em tantas outras línguas. Porquê? Porque tu, Agnès, infelizmente inspiraste o Contencioso Administrativo Europeu. Porque hoje és a cara da Justiça Administrativa que conhecemos.
Quando remontamos a 1871, o teu ano negro, encontramos a origem da necessidade de estender os mecanismos de responsabilidade civil ao Direito Administrativo. A sorte que hoje temos é a consequência do azar que tu sofreste.
Em Portugal encontrávamos até há muito pouco uma administração pública “desresponsabilizada”, uma administração pública que agia inconsequentemente na segurança de que nada lhe aconteceria. Mas e os particulares? A esses restava-lhe confiar na vida, acreditando que nada de mal a administração pública lhes faria.
Em 2002, aquando da reforma do Código do Processo dos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a proposta de lei de responsabilidade civil extracontratual do Estado viu-se rejeitada. Este acto consubstanciou-se numa falta de protecção dos particulares inaceitável no mundo moderno, entendemos nós. Por exemplo, se tu, Agnès, tivesses sofrido o mesmo acidente que sofreste em França em 1871 mas em Portugal em 2000 os resultados teriam sido os mesmos. Não conhecíamos respostas, não sabíamos um problema de responsabilidade civil da Administração Pública devia ser julgado em tribunais comuns ou em tribunais judiciais, não sabíamos se estávamos perante um acto de gestão privada ou gestão pública nem mesmo se a situação era regulada pelo Direito privado ou se pelo Direito público. As respostas começaram a surgir: diziam Sérvulo Correia, Rogério Soares e Freitas do Amaral que importava saber se estávamos pu não perante um ambiente de Direito público. Mas o que era afinal um ambiente de Direito público? As respostas começavam efectivamente a surgir mas com elas apareciam novas dúvidas.
O princípio da responsabilidade do Estado está previsto na CRP nos artigos 22.º e 271.º, não restando dúvidas de que a Administração Pública deve ser responsabilizada pelos danos que possa causar
Os problemas da responsabilidade civil extracontratual administrativa começaram a ser solucionados em 2004 quando os litígios em matéria de responsabilidade administrativas começaram a ser tratados pelo contencioso administrativo. Decidiu, também, o legislador que os Tribunais administrativos eram competentes para decidir  sempre que houvesse lugar a responsabilidade civil dos órgãos administrativos. A solução parecia aceitável, mas os resultados revelaram-se desastrosos: facilmente num caso como o teu o Estado num pedido reconvencional pediria que os teus pais ressarcissem o Estado pelos prejuízos sofridos pela administração (a destruição do carro, por exemplo) e o Tribunal ainda decidiria a favor do Estado. Onde estariam os teus direitos?
Só em 2007 é que o legislador português entendeu ser pertinente criar um regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado relativamente sensato, com a lei 67/2007 de 31 de Dezembro.
O diploma, no seu artigo 1º, volta a suscitar as dúvidas que já tínhamos exposto: o que é afinal uma gestão pública e uma gestão privada? Defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos que a manutenção desta ideia foi intenciona, lamentando-a, no entanto. Carla Amado Gomes entende a ideia e defende a sua manutenção em determinados casos. Já Vasco Pereira da Silva considera que a manutenção desta ideia não foi mais que um equívoco do legislador mas que este estabeleceu alguma unidade e que foi deixada uma porta aberta que permitirá a unificação da responsabilidade de toda a Administração Pública. Entende, também Vasco Pereira da Silva, que hoje podemos considerar o regime da responsabilidade civil um regime unitário.
O diploma de 2007 veio eliminar as dúvidas quanto à competência para decidir questões de responsabilidade civil extracontratual do Estado. O artigo 4º, n.º1 alíneas f), g) e h)  do ETAF prevê, inclusivamente, que as questões de responsabilidade civil extracontratual do Estado fazem parte do âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos. Assim, a Lei 67/2007 preocupa-se em abranger os “danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa”.
Entende Vasco Pereira da Silva que a Lei ao fazer referência a princípios de Direito Administrativo demonstra que o legislador quis consagrar um regime uniforme para todo o regime da responsabilidade civil da Administração Pública. Esta é a solução alemã que remete todos os regimes para uma solução unitária do ponto de vista jurisdicional e legislativo.
A solução legislativa encontrada comporta, no entanto, uma grande deficiência: os Tribunais ao condenarem a Administração Pública estão simultaneamente a condenar o próprio particular lesado uma vez que este é, de algum modo, responsável pelo património da Administração Pública, na medida em que paga impostos, por exemplo. Devemos olhar para esta questão de uma forma em que vejamos o comportamento como um todo em que a Administração Pública tem de cumprir com os seus deveres e não lesar os direitos dos particulares.
Resta-nos agradecer-te a ti, Agnès, por seres a origem do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado que conhecemos hoje em dia e agradecer-te por teres sido a cara de todos os particulares na luta por uma verdadeira Justiça Administrativa capaz de defender os particulares.

Obrigada por teres garantido que hoje, caso aconteça algo, temos todos direito a um tratamento digno,

Marta Castro Henriques


Marta C.H. Tavares

Aluna nº 24091

Contencioso Pré-Contratual Urgente

I. Breve Introdução Histórica.
O contencioso pré-contratual como figura especifica da nova Acção Administrativa Urgente, sofreu significativas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, que procedeu à revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. No presente comentário iremos debruçar-nos sobre as mudanças, dando especial enfoque à figura do contencioso pré-contratual urgente.

Era uma distinção muito sonante no processo estrutural do contencioso administrativo português aquela que separava a acção administrativa especial da acção administrativa comum. De modo a entendermos estas acções é necessário fazermos um exercício histórico do que é o direito administrativo, sendo que este exercício é imprescindível para percebermos a evolução que nos levou até ao modelo actual.

Quando falamos do problema das formas de processo, estamos a falar em particular do processo declarativo. A primeira grande distinção que se pode fazer no processo administrativo é aquela que separa a forma executiva do momento declarativo. Sendo que a primeira corresponde ao momento em que se determina o direito aplicável ao caso, e a segunda corresponde ao executar essa determinação no plano dos factos.

De momento interessa-nos o processo declarativo no processo administrativo. Se olharmos para o artigo 35.º do CPTA vemos que este processo se rege pelos títulos II e III, assim como pelas disposições gerais, sendo-lhe subsidiariamente aplicável o disposto na lei processual civil. O titulo II rege a acção administrativa, e o titulo III os processos urgentes.

Em 2002 a opção foi de relativa continuidade em relação ao modelo anterior. O modelo tradicional do contencioso administrativo em Portugal, distinguia entre recursos e acções, e em especial o recurso contencioso da relação, que actualmente corresponde a acção de impugnação de actos administrativos. Em relação ao processo declarativo, este apresentava uma bifurcação: acção administrativa especial e acção administrativa comum.

A distinção entre estes dois tipos de acções era feita por uma causa e consequência. A acção administrativa especial tem como causa a pratica ou a omissão de manifestações de poder publico, a acção administrativa comum englobava as restantes acções, funcionando como uma forma de processo residual. A consequência pratica desta distinção era a tramitação das respectivas acções, a acção administrativa especial tinha um rito processual especifico, de modo diferente a acção administrativa comum seguia o rito processual do processo civil.

A razão explicativa desta diferença é que o tipo de pretensões relativas a acção administrativa especial, eram pretensões mais directamente ligadas ao exercício de funções típicas, ou de formas típicas de exercício da função administrativa e, portanto, ligadas ao exercício de poderes de autoridade. Quanto aos outros pedidos, entendiam-se que estes colocavam a administração e o particular numa relação paritária e, portanto, justificava-se que o modelo de tramitação fosse o do processo civil.
Esta dicotomia era bastante criticável por varias razões. Esta distinção criava uma relativa distorção do regime, dando a ideia de que o contencioso administrativo não era um modelo processual própria. Criava ainda outro problema de ordem pratica, que era a distinção entre acção administrativa especial e acção administrativa comum, sendo que um erro destes poderia levar à absolvição do réu da instância.

II. Modelo Actual. 
Em 2015, o contencioso administrativo português acabou com esta distinção. O que temos actualmente é uma forma de processo declarativo não urgente única, a que o código chama de acção administrativa. Segundo o artigo 37.º do CPTA, sob a forma de acção administrativa cabem todas, ou pelo menos, quase todas as pretensões que possamos utilizar a titulo principal. Hoje já não se coloca a questão metafísica de saber o que é acção administrativa especial e acção administrativa comum.

Desta forma deixamos de ter duas formas de processo declarativo distintas, que se reflectia em termos práticos sobretudo em tramitações diferentes, para uma forma de processo não urgente declarativa principal. A consequência principal desta unificação das formas de processo é o modelo actual de tramitação único, ou tendencialmente única, que é aquele que resulta justamente dos artigos 78.º e seguintes.

Hoje a dicotomia que conseguimos estabelecer na ordenação de processo administrativo é a dicotomia entre acção declarativa não urgente e acção declarativa urgente.

III. Regime do Contencioso Pré-Contratual.
O regime do contencioso pré-contratual insere-se nos processos urgentes, e é importante referir as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, que se traduziram num alargamento do seu âmbito de aplicação (cfr. artigo 100.º do CPTA), “de modo a abranger um contencioso relativo à formação de todos os tipos contratuais compreendidos pelo âmbito de aplicação das directivas da União Europeia em matéria de contratação publica”, conforme se lê no Preâmbulo do já referido Decreto-Lei.

O contencioso pré-contratual urgente é um processo instituído em razão de urgência na obtenção de uma decisão de fundo sobre o mérito da causa. A contratação pública assume grande importância num contexto de Mercado Único Europeu, assim como a necessidade de garantir uma eficaz e efectiva existência de meios contenciosos em matéria de contratação pública. Sendo que o contencioso pré-contratual pretende atingir objectios que prosseguem a satisfação quer de interesses públicos quer de interesses privados, como a estabilidade dos procedimentos pré-contratuais e o inicio da execução dos contratos administrativos numa lógica de transparência e concorrência.

Deve ser imperativo de qualquer sociedade moderna a garantia de uma tutela jurisdicional efectiva dos particulares, a garantia da transparência nos negócios que envolvam interesses públicos e a garantia de uma concorrência adequada. A exigência de regimes legais bem construídos e o rápido e eficaz funcionamento dos tribunais são pressupostos para isso.

A jurisprudência rapidamente se concluiu pelo alargamento do objecto dos referidos processos urgentes, sendo que este não devia ficar meramente reduzida a impugnabilidade. Discutiu-se a possibilidade de integração de pretensões diferentes das de cariz meramente impugnatório e, em particular, pretensões relativas à condenação da prática do acto administrativo devido. Pela conveniência da concentração global das relações jurídicas administrativas, entendeu-se pela sua admissibilidade, apesar de uma ausência de consagração legal.

A legitimidade actual no contencio pré-contratual é retirada da regra geral que consta do artigo 55.º e 9.º, n.º 1 do CPTA, por força da remissão feita pelo artigo 100.º, n.º 1. Desta forma, podem recorrer a este meio contencioso os candidatos e concorrentes no procedimento adjudicatário (entre elas as entidades adjudicantes), o Ministério Público e aqueles que sejam excluídos por regras que alegam ser inválidas. A este elenco juntam-se as pessoas que operam no mercado e que possam ser lesadas pela celebração do contrato.

IV. Artigo 100.º do CPTA - enumeração taxativa ou exemplificativa dos contratos públicos abrangidos?
Importa saber em que termos funciona o artigo 100.º do CPTA. Este funciona como uma norma fechada – taxativa, pois o processo é urgente face aos interesses e ao objecto em causa. O legislador teve a hipótese de alargar o presente regime a todos os contratos que seguem o regime do Código dos Contratos Públicos, e não o fez. A terminologia dos contratos elencados no artigo 100.º do CPTA vem conformar-se com a terminologia usada no artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos.

Muito embora, abandonando o dualismo presente no código anterior, permaneceu um modelo dualista no âmbito do contencioso pré-contratual. a determinação dos procedimentos pré-contratuais abrangidos, em função da espécie de contrato a celebrar, tendo sido apenas acrescentado um novo contrato. Assim permanecem excluídos deste meio processual urgente os contratos que não sejam enunciados no artigo 100.º do CPTA.

A taxatividade do artigo 100.º levanta problemas no que diz respeito ao contencioso de actos administrativos praticados em coligação substancial com contratos públicos – os contratos mistos, uma vez que à luz desta tipologia fechada estes não seriam de aceitar. Ora, tendo em conta a ratio do artigo 100.º esta solução não se apresenta como a mais desejável e defensável. Sendo assim, face à sua urgência e obrigatoriedade de uma tramitação em si urgente e especial não se pode deixar de apresentar como uma situação especial e carente de tutela judicial, na qual, os meios de processo urgente se apresentam como a única forma de assegurar a referida tutela.